sexta-feira, 17 de abril de 2015

A beleza e o terror


 O terror islâmico











a beleza dos navajos


O jornalista canadense Graeme Wood escreveu há pouco tempo um texto muito bom sobre o Estado Islâmico. Mostra as raízes desse grupo e o contextualiza dentro de um mundo que é quase incompreensível para nós, aqui nessa parte do globo. Vale muito a pena conhecer esse trabalho (http://www.publico.pt/mundo/noticia/o-que-e-o-estado-islamico-1690458), que pode ser lido em português na página do jornal “O Público”.

Lá pelo final do texto ele trabalha uma ideia, que buscou em Orwell, e que me tirou o sono. Diz: “O  fascismo é psicologicamente muito mais sólido do que qualquer ideia hedonista da vida... Enquanto o socialismo, e até mesmo o capitalismo, de uma forma mais relutante, tem dito às pessoas ‘dou-te a oportunidade de passares um bom bocado’, Hitler disse às pessoas “vos dou a luta, o perigo e a morte, e em resultado teve uma nação prostrada a seus pés”. Assim, adverte Wood, “não devemos subestimar o encanto que a barbárie possa ter ao nível das emoções. Nem, no caso do EI, o seu encanto religioso ou intelectual”.

Pois, então, o que se esconde nesse pequeno parágrafo? A terrível certeza de que a promessa de beleza que tanto o capitalismo como o socialismo – duas estradas da modernidade europeia – fizeram não se cumpriu, e as pessoas, de alguma forma, não acreditam mais que isso venha a acontecer. Daí essa busca pelo espetaculoso, o perigo, a aventura. 

O capitalismo, que promete a vida boa, só conseguiu manter na crista da beleza uma pequena parcela da população. Os que são donos dos meios de produção, os muito ricos, os poderosos. São esses, e são poucos, os que surfam na onda da vida cheia de alegrias e prazeres.

O socialismo, nunca se cumpriu. A vida bonita para os trabalhadores, os explorados, os oprimidos ainda não chegou e as experiências que se dizem socialistas tampouco conseguiram oferecer a beleza para essa parcela majoritária da população. 

Nesses tempos de vida de plástico, de mundos virtuais, de corações solitários e mentes vazias, já parece não haver chance para a beleza. Poucos são os que acreditam na possibilidade daquilo que já ensinavam os índios navajos: “beleza em baixo, beleza em cima, beleza pelos lados. Viver é caminhar na beleza”. 

O recrutamento de jovens em todo o mundo para atuarem nos grupos fundamentalistas que hoje aterrorizam o oriente médio e parte do continente africano não promete nenhum mundo de belezas. Pelo contrário. O que tem a dar é o ódio, a guerra, a morte. E ainda assim, são centenas os que chegam em busca desse eldorado às avessas. 

E nem precisamos ir tão longe. Nas últimas manifestações de rua, de grupos de direita ou mesmo outros que se creem sem ideologia, o chamamento também foi ao terror. Nas faixas e cartazes pedindo a intervenção militar o que está implícito? Justamente o mundo do terror. Que venham as botas, as armas, a tortura, os desaparecimentos, as mortes. E aparentemente essas pessoas estão dispostas a também sujarem as mãos para “corrigir” o mundo, livrando-os dos comunistas, dos gays, dos que não creem em deus. 

Não é sem razão que nas comunidades onde já está instalada a intervenção militar, como são as favelas do Rio de Janeiro, o terror seja a hegemônica realidade. Milhares de meninos e meninas que vivem acossados pelas tropas do estado, já não sonham com as belezas do capitalismo que saltam nas telas de TV. Muitos deles são seduzidos pela força que representa aquele mundo do terror. Por isso se armam e desfilam suas pistolas e fuzis pela comunidade, sem nada esperar além da fruição do momento de poder. 

Tanto nas montanhas do Iraque como nas periferias das grandes cidades do mundo, há uma juventude sem expectativa. Apenas vivendo a emoção do presente precioso. Um presente de força, de poder de vida e morte sobre o outro, em nome de um deus ou em nome de nada. 

O mundo capitalista inaugurado há pouco mais de 300 anos prometeu e não cumpriu. A beleza perdeu seu valor, sumiu num horizonte já não vislumbrado. As cidades desumanizaram as vidas, as periferias são espaços de dor. Poucos são os que conseguem transcender ao caos da realidade cotidiana. O drama do outro passa a ser só mais uma foto para postar no facebook, cuja sensação logo desaparece assim que outro fato, mais bárbaro tome seu lugar.  

Essa semana, soldados agrediram de tal forma um travesti, que seus rosto ficou transfigurado. E ainda foi fotografado, com os seios à mostra, sendo obrigado a declarar que mereceu o corretivo, porque agrediu um policial. Certamente nada vai acontecer com quem cometeu esse crime. Seguirão massacrando as pessoas pelo simples fato de que podem. E os que são submetidos a isso guardarão suas lágrimas enquanto esperam a hora da vingança. Que virá. É o mundo Mad Max. E não poderia ser diferente.

Como encontrar a beleza nesse mundo, então? Até ontem a utopia de um mundo novo, justo e digno, era o que nos fazia caminhar. Mas se essa visão se esboroa, o que sobra? 

O debate provocado pelo texto do jornalista canadense tem me tirado o sono. É quase como que a inversão completa de tudo o que sempre acreditei. O terror vencendo a beleza. Será? 

Prefiro acreditar que não, que podemos sim re-encontrar o caminho para casa. Porque a beleza é o lar natural do humano. E quando a dúvida me toca com sua mão gelada, volto a um livro abissal, que é “A Caverna”, do Saramago. Sim, ele, o pessimista. Nesse romance, ele fala de um tempo muito parecido com o que temos vivido e nos apresenta uma trupe de pessoas que resolve girar ao contrário. É tão bonito, mas tão bonito, que chega a doer. 

Por aqui, vou fazendo minha parte, tão ínfima e quase inútil. Mas não quero desistir da alegria de viver num mundo bom. Sei que para isso há que travar uma luta titânica, muitas vezes feroz. A luta de classes, da qual falou Marx. Os oprimidos quebrando as correntes e comandando suas próprias vidas. A vida de beleza dos navajos. Para isso há que fazer viver a beleza, torná-la real, para que outros a vejam e queiram com ela caminhar. Não sei muito bem como fazer isso, estou tateando. Penso que cabe a cada um de nós, coletivamente, não permitir que o terror seja o desejo das gentes. 


quinta-feira, 16 de abril de 2015

Mais de cinco mil nas ruas de Florianópolis






















fotos: Rubens Lopes

Oneide dos Santos sabe muito bem o que é terceirização. Ela trabalhava como costureira numa grande empresa de confecções. Tinha um bom salário, direitos trabalhistas resguardados, vale-refeição e tudo o mais. Até que um belo dia foi demitida, mesmo depois de ter dedicado quase vinte anos da sua vida para a empresa que julgava ser a sua casa. O patrão havia decidido enxugar a empresa e contratar costureiras terceirizadas. Assim, em vez de pagar um bom salário a uma trabalhadora, ele passou a pagar uma quantia fixa para uma segunda empresa que contratava mão de obra mais barata. Oneide mesmo foi parar numa dessas empresas que revendem trabalho terceirizado, ganhando praticamente a metade do que ganhava na primeira empresa. 

Então, é disso que se trata a terceirização. Desonerar os patrões para que tenham mais lucro. Enquanto isso, os trabalhadores têm os salários reduzidos, trabalhando muito mais. É o que Ruy Mauro Marini chamou de “superexploração do trabalho”, situação característica dos países dependentes, quando a remuneração do trabalho fica bem abaixo do seu real valor. 

Situação igual à de Oneide pode ser vista todos os dias na Universidade Federal de Santa Catarina, onde várias funções são terceirizadas, tais como a de faxineiras, porteiras, motoristas, seguranças e jardineiros. As pessoas trabalham no mesmo ambiente, mas ganham salários muito mais reduzidos que seus colegas concursados, criando uma divisão intraclasse que, inclusive, dificulta a organização. E não bastasse o salário abaixo do valor, esses trabalhadores ainda vivem situações de precariedade nos direitos e nas condições de trabalho. 

E foi justamente contra essa precarização da vida laboral que os trabalhadores saíram às ruas nessa quarta-feira, dia 15. Em Florianópolis, o dia estava emburrado e chuvoso. Mas, nada tirou a disposição das gentes em realizar o ato de protesto contra a retirada de direitos e contra a lei das terceirizações. Pela primeira vez em muitos anos, todas as centrais sindicais chamaram seus filiados. Dessa vez não houve nenhuma menção de apoio ao governo. Foi só luta contra a terceirização e contra a retirada de direitos. 

A rua avermelhou com as tradicionais bandeiras de luta. Partidos de esquerda, centrais, sindicatos, funcionários públicos, aposentados, informais. Todos vieram com seus cartazes e reivindicações. Não faltaram os tradicionais “fora Rede Globo”, acrescidos do regional “Fora RBS”, numa alusão a empresa monopólica de comunicação do estado. A passeata que saiu da frente da Catedral juntou mais de cinco mil pessoas. Grande parte dos presentes era formada pelos professores estaduais em greve. O magistério catarinense trava dura batalha com o governo de Raimundo Colombo, que não se digna sequer a pagar o piso nacional aos concursados e ainda arrocha a vida dos “terceirizados” da educação, que são os contratados temporariamente. 

A caminhada seguiu pelas principais ruas do centro da cidade e dialogou com a população sobre a lei da terceirização e a retirada de direitos. Os trabalhadores alertam que não basta inflacionar os números de aumento de emprego, se esses empregos são precarizados, superexplorando a vida das pessoas. Terceirizar é explorar ao dobro. E a única opção para quem precisa vender sua força de trabalho é a luta coletiva. Sem isso, tudo fica pior.

A marcha dos trabalhadores unificou partidos de esquerda e militantes petistas (do governo que hoje está no poder). Mesmo ainda defendendo o PT, os trabalhadores ligados ao partido sabem que nada pode justificar a retirada de direitos. Dentro do sistema capitalista, a única forma de manter a vida em algum patamar de dignidade é lutando por melhorias salariais, melhores condições de trabalho e garantia de direitos. Para além disso só a revolução, que pode apontar outras alternativas de distribuição de riqueza e trabalho coletivo. E, enquanto as condições para isso não estão dadas, a batalha tem de ser no campo sindical. Nenhum direito vem de graça ou por benesse de um ou outro governante. Tudo o que foi conquistado até hoje pelos trabalhadores foi na luta renhida. 

Por isso, é sempre bom ver os trabalhadores unificados na peleia por vida boa e bonita. Esse primeiro passo – de unificação - dado no dia 15, pode ser o início de uma avalanche de luta que ainda está por vir. Aparentemente, os sindicatos saíram da letargia provocada por mais de 10 anos de esperanças num governo dito dos trabalhadores, ou mesmo de cooptação governista.  O PT já mostrou que está disposto a sacrificar os trabalhadores em nome da “estabilidade econômica”  patronal. Os ajustes e cortes orçamentários estouram, como sempre, no lado dos empobrecidos, dos assalariados. Sendo assim, não resta saída. É luta, luta e luta!


quarta-feira, 15 de abril de 2015

TAEs Livres - somos ímpares






















Eleição para o Conselho Universitário e Conselho de Curadores da UFSC

Já está bem aí a eleição para o Conselho Universitário. Será no dia 23 de abril, com urnas lá no Saguão da Reitoria, no HU, no CCA e nos demais campi da UFSC. Como todos sabem é no Conselho Universitário que se decide a vida da instituição, seja no seu fazer administrativo, político ou trabalhista. Por isso, é muito importante que os representantes dos Técnico-administrativos em Educação (TAEs) sejam pessoas realmente comprometidas com a educação e com a luta dos trabalhadores. Gente que fala, que luta, que pressiona, que disputa, que não se rende.

Nossa chapa TAEs Livres – abrindo as portas” é fruto de um longo trabalho que vem desde as movimentações de 2011, quando conseguimos aglutinar muitos trabalhadores recém-chegados à UFSC no caminho da luta por recuperação de direitos, por novos direitos, contra o assédio moral, pela 30 horas. Conseguimos, pela primeira vez, eleger os seis representantes dos TAEs com essas características de gente lutadora e comprometida com os interesses reais dos TAEs. O trabalho realizado ao longo desses dois anos foi bonito. A bancada dos TAEs deu visibilidade ao conselho, divulgando em tempo real os debates, via facebook, permitindo assim que os trabalhadores pudessem se manifestar enquanto a discussão ocorria. Também, pela primeira vez os trabalhadores puderam ter acesso a análises sobre os grandes temas discutidos e definidos no CUN, com o relato completo das discussões e sobre como atuaram os conselheiros.

Conseguimos problematizar a questão das Fundações de apoio, fazendo com elas ficassem mais transparentes, e provocando o debate sobre a necessidade de sua existência na UFSC. Também garantimos democracia no debate sobre a EBSERH e travamos forte batalha na discussão sobre as eleições para a reitoria e a participação paritária dos trabalhadores e estudantes.

Nossa bancada atuou com zelo e disciplina também no Conselho de Curadores, onde nossas representantes conseguiram tornar transparente um mundo até então interditado para a maioria.

Agora é hora de seguir fazendo a diferença dentro dos Conselhos da UFSC. Para isso apresentamos nossas chapas. Cada trabalhador pode votar em seis chapas, referentes aos seis membros titulares/suplentes. Pedimos o seu voto para continuarmos fazendo a luta e representando os TAEs.

Nós somos os ímpares - 1,3,5,7, 9 e 11

Chapa 1 – Renato Ramos Milis/Criatiane Barbado
Chapa 3 – Kauê Tortato Alvez/ Jonatan Sernajoto Urbano Moraes
Chapa 5 – Carla Cerdote da Silva/ Elaine Tavares
Chapa 7 – Terence Burchert Miranda/ Clésio Lima
Chapa 9 - Hélio Rodack de Quadros Jr/ Ismael dos Santos
Chapa 11 – Luciano Agnes/ Cibeli Machado

Para o Conselho de Curadores há chapa única. É nossa!

Chapa 1 - Brenda Piazza/ Antonio Marcos Machado.

Esperamos seu voto.





segunda-feira, 13 de abril de 2015

Histórias de um pescador



Renata, filha de Alfredo, entre os editores








Seu Alfredo fazendo rede


Quem esteve na barqueata promovida pelos pescadores da Ponta Coral, em Florianópolis, sabe muito bem das dificuldades que esses trabalhadores enfrentam na dura lida de tirar do mar a comida do dia. Com a sistemática destruição do ambiente, os pescadores artesanais estão perdendo o seu “escritório”, seu lugar de trabalho, o mar. Expulsos das praias, eles acabam tendo de abandonar a profissão ou virar empregado de barcos pesqueiros comerciais. Os jovens já não sonham mais em domar o mar, como nos tempos mais antigos.
“No meu tempo, o jovem carregava no sangue um forte desejo de se tornar um homem do mar. Logo que completava 16 anos, ele tirava sua matrícula na Capitania dos Portos e já se embarcava. E por que este desejo? Porque o mar tem seus encantos naturais. Uma noite de lua cheia em alto-mar é de uma beleza fascinante! Olhar o céu, em uma noite estrelada, com cometas cruzando para todos os lados, é inesquecível! Quem não se entusiasmaria com grandes lances de sardinha que chegavam a atingir 100 toneladas? Eu não fui diferente...”
Essas são palavras de um pescador das antigas, lá da praia de Penha, que, preocupado com a destruição da profissão de pescador, decidiu escrever suas memórias para que a lida no mar ficasse eternizada em palavras. Seu nome é Alfredo José Rosa, nascido e criado no vilarejo de Armação de Itapocoroy, onde viveu da pesca desde os anos 50, sustentando com o braço firme uma família de sete filhos. Aposentado nos anos 80, passou a registrar suas histórias, que viraram crônicas, algumas publicadas na Revista Pesca e Navegação, do jornal Diarinho, de Itajaí.
O material escrito por Alfredo foi reunido por sua filha, a jornalista Renata Rosa, e se transformou num livro que, além de contar das belezas e agruras da vida do mar ganha importância histórica uma vez que a cidade de Penha, onde fica a Armação de Itapocoroy, vive hoje um outro ciclo econômico baseado muito mais no turismo do que na pesca, iniciado com a chegada do Parque Beto Carrero. Assim, as palavras do velho pescador se concretizam em memórias de um tempo que se esboroa, uma vez que a juventude do lugar já não sonha em “embarcar”.
Alfredo morreu no ano de 2009, aos 74 anos, vítima de câncer cerebral, mas a vivência de mais de 30 anos no mar hoje se fazem eternas no livro editada pela editora itajaiense Ipê Amarelo, que, além das crônicas já publicadas no Diarinho, oferece outras seis histórias inéditas. “Alfredo, um pescador” é um documento de memória importantíssimo para quem vive no litoral, pois, na medida em que cristaliza a vivência de um único pescador, acaba oferecendo a visão de toda uma atmosfera universal que perpassa a lida diária dos pescadores da nossa terra.
O lançamento do livro em Florianópolis está sendo organizado pela jornalista Renata Rosa, que além de proporcionar a beleza das memórias de Alfredo, oferecerá aos que vierem celebrar esse momento, a tradicional “concertada”, uma bebida ancestral, típica do litoral catarinense. E, assim, entre um gole e outro de pura vida, os relatos de Alfredo navegarão pela sala, embalando os leitores numa jornada úmida, no caminho do mar, trazendo o passado para o hoje e evocando a possibilidade da resistência da pesca artesanal. Porque enquanto houver um pescador na beira do mar, o chamado das ondas despertará a canoa.
Que venham todos os pescadores ouvir as crônicas do velho Alfredo. Porque ele é cada um, na esperança da pesca farta que ainda resiste nas velhas canoas de tronco de Garapuvu. O lugar não poderia ser mais propício: à beira da lagoa da conceição, no centro cultural.

Serviço
O quê? Lançamento do livro “Alfredo Pescador”
Quando? Dia 24 de Abril de 2015, às 20h30
Onde? Centro Cultural Bento Silvério, a rua Henrique Veras do Nascimento, 50, Lagoa da Conceição.


Quanto? R$ 30,00


domingo, 12 de abril de 2015

João Cândido - o almirante negro


 João, ao centro, de riso largo



Salve, o navegante negro
que tem por monumento
as pedras pisadas do cais.




















O menino João Cândido era negro, mas nasceu livre, em 1880, num lugar que já anunciava seu destino: Encruzilhada, nas planuras do Rio Grande do Sul. Cresceu gaudério, afeito as lides do campo. Sua iniciativa e capacidade de trabalho atraiu a atenção de um político local, capitão de fragata, Alexandrino de Alencar, que foi um dos comandantes da Revolta da Armada, uma revolta de oficiais contra a pouca atenção dada à Marinha pelo então Presidente da República, marechal Floriano Peixoto. Alencar era comandante do encouraçado Aquidabã na última batalha, próxima à ilha de Anhatorim nos arredores da cidade de Desterro, hoje Florianópolis. Com o fim dessa rebelião, que foi derrotada, ele chegou a ter de se exilar. Mas, retornando, viu no garoto João, um líder, e o recomendou à Marinha quando este completou 13 anos de idade.

Assim, enquanto a maioria dos marinheiros era recrutada à força pela polícia, João fez-se aprendiz na Marinha de Porto Alegre, sendo transferido para o Rio de Janeiro, como grumete, em 1895, então com 14 anos. E o guri, que nascera no solo firme da campanha gaúcha, se fez homem do mar, predestinado a cumprir um destino que mudaria a vida de todos os marinheiros. 

Nos caminhos do mar, João Cândido conheceu muitos lugares, onde pode aprender sobre seu ofício e sobre a luta dos trabalhadores. Numa das viagens que fez à Grã-Bretanha, em 1908, ficou sabendo sobre a revolta dos marinheiros russos( do Encouraçado Potemkin), acontecida em 1905, na qual reivindicavam melhor alimentação e condições de trabalho. João atentou. Ele já era uma liderança entre os colegas, justamente por sua preocupação com a situação dos marinheiros e por sua qualidade como timoneiro.  

Naqueles dias era ainda bastante comum o uso da chibata como castigo dentro da Marinha brasileira, mesmo já tendo sido legalmente abolido. Isso não era incomum visto que 90% do quadro era formado de negros e mulatos. O tempo passara, a escravidão já fora abolida, mas o tratamento com os negros permanecia igual. E esse tema do castigo era muito presente entre os marinheiros. À boca pequena se discutia e se conspirava contra as chibatadas, e João Cândido estava no centro desses debates. Conforme consta na sua ficha, nos quinze anos em que permaneceu na Marinha, foi castigado com a chibata em nove ocasiões, preso entre dois a quatro dias em celas solitárias "a pão e água", além de ter sido duas vezes rebaixado de cabo a marinheiro. Ele organizava as lutas e bem sabia o que eram os maus tratos praticados pela Marinha.

No ano de 1893, na canhoneira Marajó, um grupo de marinheiros já havia esboçado revolta contra o excesso de castigos físicos, exigindo a troca do comandante, mas não ousavam pedir o fim do castigo. Foi só depois do retorno da Grã Bretanha, em 1908, com as notícias da revolta dos russos, que a coisa começou a esquentar por aqui. No começo, a luta dos marinheiros se fez no campo institucional. Muitas audiências foram realizadas com políticos e até com o então ministro da marinha, o protetor de João Cândido, Alexandrino de Alencar. Toda essa movimentação contra os castigos corporais e melhores condições de trabalho junto aos parlamentares e dirigentes das forças armadas foi capitaneada pelo marinheiro João Cândido, de formidável figura. Negro, alto, forte, alegre, de olhar penetrante e risonho. Não havia dúvidas com relação a sua liderança entre os marinheiros.

As negociações não deram em nada e os marinheiros decidiram então que era chegada a hora de uma revolta. Marcaram o dia 25 de novembro como o dia da sublevação. Mas, no dia 21, um fato antecipou o plano: um marinheiro de nome Marcelino Rodrigues de Menezes foi punido com 250 chibatadas, que não pararam nem quando o jovem já havia desmaiado. Indignados, os marinheiros decidiram começar a revolta no dia seguinte. 

A revolta

E assim foi. A ideia era o tomar o navio Minas Gerais naquela noite, visto que o capitão dormiria fora. Eles pegariam as armas, dominariam os oficiais em seus camarotes, assumiriam o controle do navio e, depois, de todos os outros que estavam na Baia da Guanabara. Mas, o destino conspirou contra. O capitão voltou mais cedo para o navio, e um marinheiro atacou um oficial de serviço, provocando a reação de todo o comando. Arma-se uma escaramuça e um dos marinheiros é ferido pelo comandante, que insiste em controlar a rebelião. Isso provoca a ira dos trabalhadores que partem para cima do comandante, até que ele é atingido por um tiro na cabeça.

Naquela noite de luta morrem no Minas Gerais, o comandante, dois oficiais e três marinheiros . Também acontecem mortes em outros navios e, assim, começa a rebelião que mobilizou 2.379 homens. João Cândido é escolhido para ser o comandante-em-chefe de toda a esquadra revoltada, composta por 4 navios, incluindo os dois encouraçados fabricados na Inglaterra, considerados os mais potentes do mundo à época: Minas Gerais e São Paulo.

João assume o comando, controla os motins e inicia negociações com a marinha exigindo o fim dos castigos corporais. Enquanto isso mantém os canhões dos navios apontados para a capital. Chega a disparar um tiro contra o palácio do governo, enquanto passa um rádio para o presidente da República. É enfático: "Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira... Vossa Excelência tem o prazo de 12 horas para mandar-nos uma resposta satisfatória...". Ali, falava já como almirante, o comandante da revolta. Na praia, o povo acompanhava, maravilhado, o balé dos navios amotinados. 

Com os marinheiros dominando os mares, as conversas evoluíram e foi fechado um acordo no qual o governo se comprometia a acabar com o uso da chibata na Marinha, bem como a anistiar a todos os revoltoso.
Mas, como costuma sempre acontecer, os governantes não cumpriram a palavra. Quando todos os rebeldes depuseram as armas, no dia 27 de novembro, e entregaram os navios, tiveram uma surpresa. O governo promulga, no dia seguinte, um decreto que permite a expulsão dos marinheiros que "representassem risco para a marinha". Era a artimanha para trair a lei aprovada no senado da República e sancionada pelo presidente Hermes da Fonseca. 

O governo também mantinha presos, apesar da anistia, muitos marinheiros que haviam participado da rebelião da chibata. Todos estavam confinados na Ilha das Cobras, onde eclodiu, em janeiro de 1911, um motim de fuzileiros navais. Nesse motim não havia uma pauta em questão, apenas era uma pré-defesa diante de boatos que diziam que o Exército iria atacar navios em represália por conta da revolta da chibata. Eram dias de muita confusão na Marinha. O governo foi implacável e bombardeou a ilha, onde estavam pouco mais de 200 homens. Depois, usou o motim na ilha como desculpa para proclamar estado de sítio e lei marcial. 

Era a vingança de Hermes da Fonseca sobre os marinheiros. Depois do motim na Ilha das Cobras centenas de marinheiros foram mortos e outros dois mil foram expulsos da Marinha. Onze foram fuzilados a bordo do Navio Satélite, que levava 105 marinheiros rebeldes para serem jogados nos seringais do Acre, destino dos 96 que lá ainda chegaram vivos.

O fim do almirante negro

João Cândido foi um dos que acabou expulso, acusado de favorecer os fuzileiros rebeldes. Foi preso em 13 de dezembro no quartel do exército, e transferido no dia de natal (24 de dezembro de 1910) para uma masmorra (a cela 5) na Ilha das Cobras, onde 16 de seus 17 companheiros de cela morreram asfixiados. Mais tarde ele contaria que 29 marinheiros e fuzileiros navais foram submetidos ao cal em duas celas da Ilha das Cobras. João é transferido em abril de 1911para o Hospital dos Alienados, como louco. Chegou a voltar para a Ilha das Cobras de onde foi solto em 1912. Apesar de livre das acusações, João foi banido da Marinha e acabou no cais, trabalhando como estivador, descarregando peixe. 

Sua figura valente sobreviveu na memória dos marinheiros, que sempre lhe renderam glórias, mas para a Marinha e para o resto do país, seu nome se esfumaçou, esquecido dentro da história oficial, sempre contada pelos vitoriosos.
Muito tempo depois, em 1933, João Cândido foi procurado pelo líder da Ação Integralista Brasileira, Plínio Salgado, para se incorporar às fileiras desse movimento nacionalista de inspiração fascista. E o velho guerreiro acabou liderando um núcleo do movimento na Gamboa, bairro portuário do Rio de Janeiro. Segundo ele, entrou para o grupo de Plínio porque este possibilitava a filiação de negros e de mulheres. Naqueles dias o integralismo aparecia como uma novidade e muitas figuras importantes caíram no canto da sereia de um nacionalismo regenerador. 

Mas, nem a aproximação com essa vertente bem à direita da política nacional fez com que a Marinha esquecesse o comandante da revolta que humilhou o governo de Hermes da Fonseca. Até uma homenagem que João Cândido receberia no Rio Grande do Sul em 1959 foi suspensa por interferência da Marinha. Foi perseguido até o final da vida, mesmo com a gradativa recuperação de sua heroica trajetória através de artigos de jornais e livros de história. 
Morreu aos 89 de idade, de câncer, muito pobre em São João de Meriti, interior do Rio de Janeiro.
A memória recuperada

Nos anos 70, João Bosco e Aldir Blanc imortalizaram o velho "almirante negro" com a música "O mestre-sala dos mares", hoje um clássico da música popular brasileira. Em 1985 o historiador Hélio Leôncio Martins escreve "A revolta dos Marinheiros - 1910" e em 2003 o cinema mostra sua história no curta "Memórias da Chibata". Em 2005 um projeto de lei propõe inscrever o nome de João Cândido no Livro dos Heróis da Pátria. Em 2007, João teve uma estátua inaugurada  no antigo Palácio do Catete, que foi bombardeado durante a revolta. A estátua, de corpo inteiro, mostra João Cândido com as mãos no leme, de frente para o mar e de costas para o palácio do governo brasileiro, que traiu sua própria palavra quebrando a anistia aos marinheiros rebeldes. 

Em 2008, 39 anos depois de sua morte, finalmente foi publicada no Diário Oficial da União, a lei que concedeu anistia ao líder da Revolta da Chibata e a todos os seus companheiros, mas não o reincorporou à Marinha, como era o seu desejo acalentado até a morte.

Em 2008, a estátua de João foi transladada até a Praça XV de novembro, no centro do Rio, num evento grandioso que contou com a presença do então presidente Lula. O representante da Marinha não compareceu. Em 2010, Lula batiza com o nome de João Cândido o primeiro petroleiro produzido no Brasil após um intervalo de 13 anos. 
Em 2012 começa a ser produzido o longa metragem "Chibata", com patrocínio da Petrobrás, que contará a saga de João Cândido e seus companheiros na histórica revolta que aboliu o uso da chibata e marcou a vida nacional.

O negro bonito, de riso largo, que saiu da campanha gaúcha para o mar não está esquecido. Ele vive e viverá. E ainda há uma longa luta para travar que é a reincorporação de João à Marinha, tal qual ele sonhava. Enquanto isso não acontece o veremos nas tardes modorrentas do Rio, mão no leme, olhando atrevido para a terra, com os canhões engatilhados. Salve, almirante, nós não te esquecemos...