sexta-feira, 7 de março de 2014

A lição da ternura





Para Gina e Javier

A ternura é uma escolha política para o gênero humano, diz Carlos Rochetta, no seu livro Teologia da Ternura, uma dessas belezuras que a gente acha escondida nas prateleiras da Paulus. Pois eu respaldo totalmente essa afirmação. A vida é barra pesada, todos os dias nos colocando à prova. Baques, desenganos, desilusões, tristezas, perdas, doenças. Não é fácil, diante de tantas coisas que poderiam nos endurecer e amargurar, escolher a ternura. Rochetta usa muito bem a antiga parábola do bom samaritano para mostrar o quanto a ternura é gesto arriscado, destituído de egoísmo, porque definitivamente é uma abertura para o outro, para a alteridade.

Conta a história que havia um homem caído na estrada de Jericó, que lá pelo ano I da atual era, tinha a fama de ser muito perigosa. Tanto que aqueles 30 quilômetros eram chamados de “a estrada do sangue”, cheia de salteadores, bandidos, ladrões. Muitas pessoas passaram pelo homem desfalecido e ninguém ajudava. Apenas um samaritano o amparou e o levou até uma estalagem, onde o deixou, com tudo pago. Optando pela ternura, o samaritano correu o risco. Enquanto os outros pensavam: “se eu parar, o que poderá me acontecer?”, aquele homem, então considerado um impuro pelos judeus, pensou: “se eu o deixar, o que poderá lhe acontecer?” Outra mirada. Outra escolha política.

Pois, por ter crescido ouvindo essas histórias de assumir o risco pelo outro sou, desde sempre, afeita à ternura. Penso que essa é a escolha mais bonita que se pode ter diante do outro. Uma delicadeza, um toque macio, um sorriso, uma afago, um poema, essas coisas que se oferecem como se fossem um cristal, tão frágeis, mas ao mesmo indeléveis. Por isso, diante de lugares e seres que amo, deixo pequenas marcas de ternura, como se fossem mesmo “pequenos estupores de beleza”. Um desenho tosco, um poeminha, palavras soltas, bilhetes de amor, acenos poéticos. Faço isso por pura graça, como um gesto de profundo carinho ante o que marca minha vida.

Como o caminho tem sido longo, para mais de meio século, essas marcas vão ficando, perdidas na estrada. Nunca sei de verdade se esses delicados gestos poéticos que me permito fazer tocam, de fato, a emoção das pessoas. A gente vive a ternura e se vai. É parte da vida mesma, esse fluxo de vivências humanas. Mas, vez ou outra, acontece alguma coisa que mostra o quanto a ternura realmente nos deixa num permanente estado auroreal (como se estivéssemos sempre nascendo), tal qual diz Rochetta.  

Dia desses encontrei um velho amigo. Separados pelo tempo e pelo espaço de 30 anos, nos achamos nas vias internéticas.  Ele mesmo, eu lembrava, era também, nos dias em que compartilhamos a vida, um desses poços de ternura que a gente encontra e bebe, devagar. Pois, depois de toda alegria do re-encontro, ele me mandou, escaneados, alguns desenhos e bilhetinhos que eu fizera para ele milênios atrás. Teve a decisão política da ternura de guardar aqueles gestos poéticos com o mesmo amor com que foram feitos. Epifania.
É quando se percebe que a ternura é mesmo coisa que exige um itinerário, que se aprende, construída dia a dia, uma arte. E ela depende também das teia de relações que ousamos criar.

Diz Carlos Rochetta, nesse livro lindo que inventaria a ternura, que ela dá o sentido da maravilha, que é capaz de dar voz à silenciosa exultação do cosmos e à nostalgia da plenitude que tudo invade.  Sim, é isso. Coisas assim nos mostram que o caminho percorrido, sempre optando pelo encontro amoroso – arriscado por demais -  é a única coisa que dá sentido á vida. O amor exige ternura capaz de riscos. E eu gosto de saber que tenho feito essa escolha todos os dias.

Muitas vezes nossa ternura não consegue entrar nas couraças que algumas pessoas vão construindo, justamente por conta de nunca se renderem à ela. E, aí, ela se perde, triste e solitária. Mas, momentos há, como esse, da visão de um singelo desenho feito há 30 anos, em que ela abre suas asas e nos embriaga.

Então, apesar de todas as dores, vou caminhando para o meu lá-na-frente tão sonhado, de vida boa e bonita para todos, carregada de minhas pequenas ternuras. Afinal, como diz o poeta, tender ao horizonte, já é possuí-lo...

quarta-feira, 5 de março de 2014

Um ano sem Chávez


















A vida na Sabana Grande

Fizemos uma volta em torno do sol, sem Chávez. Quando anoiteceu, abri uma cerveja, bem gelada, e fui sorvendo gole a gole. Como se estivesse de novo na Sabana Grande. Foi ali que descansei o corpo nos dias em que vivi a Venezuela de Chávez. Era 2006. Tinha reservado hotel aqui do Brasil, sem saber como era, nem onde se localizava. Tudo que sabia é que era em Caracas. Pois o Hotel Cristal era um desses hotéis de fluxo contínuo, que serve aos amantes do grande bulevar da Sabana Grande. Só por isso já aparecia belo aos meus olhos. Porque abrigava esses amores fortuitos, apressados, de delicado estilo, cheios de urgência. 

Na recepção, nos aguardava um mal-humorado Jesus, anti-chavista, portanto sem qualquer afinidade com seu homônimo, nazareno, que por certo amaria a revolução bolivariana. Achando ruim que chegassem tantos estranhos – e o que é pior, nem eram casais – o tempo todo ficou criando caso. Talvez não conseguisse conceber hóspedes normais, sem a marca do amor que urge se consumar. Os chegantes, alguns já intimidados com a simplicidade do lugar e com sua peculiar especificidade, se olhavam sem saber o que fazer. Mas, com o passar dos dias, tudo foi se acomodando, O hotel Cristal virou casa. O mau humor dos porteiros foi tirado de letra e alguns deles, como o Abrão e o Omar, viraram amigos. 

Saindo do Cristal, assomava toda a beleza do bairro onde ele estava situado: Sabana Grande. O bairro era um amontoado de barracas de lona e um universo caótico de sons de salsa, merengue e música llanera. E, bem ali, no coração da Sabana, estávamos nós, um pequeno grupo de catarinenses. “Cuidado! É muito perigoso! Não se desgrudem das bolsas! O povo aqui ataca com faca! Fiquem longe dos drogados!” Estes eram alguns dos conselhos do povo do hotel e de quem mais a gente encontrasse na cidade. Pois a Sabana Grande era um espaço de pobres, onde vicejavam os hotéis de encontros e as tascas, casas de shows com mulheres de preço bom. Pelas ruas, tão logo levantavam acampamento os trabalhadores informais, chegavam os mendigos, drogados, prostitutas e as gentes sem porvir que buscavam um pouco de amor, ainda que em braços e bocas alugadas. 

Mas, apesar de todos os avisos, ninguém ali teve problemas. Terminadas as funções do Fórum e as visitas a grande Caracas, voltávamos e nos aboletávamos em alguma mesa de um dos bares mais animados. Depois de algumas “polares” geladas, muito bem atendidos pelo simpático Jairo – chavista de coração - a gente vinha saltitando pela calçada suja, sem que ninguém interpelasse. Nenhum roubo, nenhuma agressão. Por conta desses paradoxos da vida, na perigosa Sabana, nosso refúgio era o Cristal. E assim, por tão frágil, não podia quebrar. Os perdidos do bulevar, num átimo de beleza, compreenderam a metáfora e nos deixaram em paz. Garrafadas, assaltos e confusões? Sim, tudo isso aconteceu, mas só depois que os catarinas já estavam seguros nas camas repartidas do Cristal.

Aquela vivência na Sabana Grande nunca mais saiu das retinas. Lembro até hoje o ranger do elevador do Cristal,  pequenino, fatigado de tanto levar os seres do bulevar rumo às camas do amor urgente. Era irascível. Sacudia, balançava, travava, demorava. Parecia triste. Não via mais aqueles olhos oblíquos de quem se esconde, aquele trote no coração de quem escapa da vida certinha, aquele suor assustado de quem sabe que vai viver uma delícia proibida, aquele tremor de mãos que anseiam por toques, aquele cheiro de corpo de fêmea e macho, fremindo de paixão. A velha engrenagem do Cristal estava a ponto de falhar. Na sua caixinha entravam e saiam todos aqueles viajantes estranhos, espantando os hóspedes fortuitos. Morreria o elevador se não pudesse ver florescer o amor, esse, feito de carne, dor e segredos. Ainda bem que os dias passaram rápido e, quando saímos, parece que ele retomou seu ritmo normal, sem paradas e sustos. Mas seu barulho ainda ressoa em mim. Saudade!

Aqueles foram dias de vertigem. A revolução bolivariana estava no seu auge. Por todo lugar a luta de classes se expressava. Anti-chavistas, chavistas, venezuelanos apartidários, sindicalistas. Tudo estava em ebulição. Era o Fórum Social Mundial e também havia gente de todo mundo, doida para ver e sentir as transformações que tinham começado em 1998, com Chávez.  Andávamos pelos bairros conhecendo os “simoncitos”, espaços para a educação infantil, as escolas novas, as estruturas para atendimento médico, os trabalhos das missões. 

Ficou nas retinas o Maracao, populoso bairro da periferia, misto de reduto português com venezuelanos da gema. Com Raul e Daniel, dois moradores locais, circulamos por ali, sentindo a força da transformação e o sentimento de profundo amor que as gentes tinham pelo “comandante”. Chovia forte e os estudantes se amontoavam nas paradas, entrando aos borbotões. Ao saber que ali viajavam brasileiros logo queriam saber de coisas. Faziam perguntas, contavam de suas vidas e confirmavam o que dizem quase todas as gentes mais humildes de Caracas. “Com Chávez, é bom!” 

Depois circulamos pelo “23 de Enero”, o famoso bairro que cerca Miraflores, o palácio presidencial. Dizia Daniel que até poucos anos atrás ninguém poderia andar por ali, assim, como fazíamos. “Era um reduto de violência, de assaltos, de gangues. Agora não, a comunidade assumiu o controle. A gente pode passear, os velhos podem ficar ao sol e as crianças brincam nas praças. Tudo isso só foi possível com o poder popular”. Dos milhares de apartamentos populares que compõe o bairro, assomavam, nas janelas, as cabeças dos mais ferrenhos defensores da revolução bolivariana. Foram eles que, no golpe de 2002, desceram rua afora até o palácio, prontos a defender com armas e com a vida o governo de Hugo Chávez. Aquele era um bairro mítico e não havia como não se arrepiar ao andar pela calle La Silsa , uma rua imensa, cheia de casas e muros pintados com grafites pró-revolução. 

É essa Venezuela, prosaica, que hoje me assalta, enquanto celebro a semeadura desse homem que marcou a vida da América Latina. Sinto o cheiro do Cristal, o barulho do elevador, a alegria da Sabana Grande, o olhar cheio de eternidades daqueles que acreditaram na revolução bolivariana, dos que o amaram e o amarão. Como eu! 

Um trago, comandante!