sábado, 6 de abril de 2013

Um dia qualquer

 
É de manhã, cedinho. O caminhão do lixo nem passou, trazendo com ele o barulho inconfundível e o grito dos trabalhadores que anunciam a coleta. As corujas ainda voejam por sobre o muro, abrindo as asas no rumo de um mais além, para longe das gentes que principiam em amanhecer. O sol de outono abraçando o mundo torna as cores mais vivas. O verde das árvores é pura esmeralda, e as penas dos canarinhos que ainda cantam, alucinados, no muro lateral, brilham como ouro. Os gatos estão deitados na mesa do alpendre, com preguiça de caçar. As laranjas-lima pesam no pé e são pura gratuidade, esperando a mão da colheita. O cheiro do mar assoma, queimando as narinas. É como se fosse uma manhã no paraíso.
 
Na rua de areia já estão os cachorros, as galinhas e os meninos. A impressão é de que eles não dormem. Basta que a barra do dia se anuncie e já dá para ouvir a gritaria dos pequenos tentando empinar uma pipa, jogando taco ou na malícia do futebol. É gostoso pensar que esses bacorinhos estão vivendo a vida assim, à larga, numa espécie de excesso de natureza. Pelos menos os da minha rua jamais são vistos grudados em videogames ou na internet. Estão ávidos demais por vento e sol. Correm pelas poças de água, com os pés descalços, ostentando os corpinhos fortalecidos com todos os anticorpos possíveis. Nem no inverno mais gelado os vejo de nariz vermelho. Parece que são de ferro.
 
Mesmo no outono, quando o vento sul já se insinua, eles entram pelo portão do vizinho que tem uma pequena piscina em casa. Quem vai à frente é o menorzinho, para amolecer o coração.
- Moço, pode¿ diz, com o olhar comprido para a alegria aquática.
- Só de tarde – diz o homem, já acostumado com o repetido ritual.
- Que horas¿
-Três horas.
 
Pois quando chega o momento, são pontuais. O pequeno circula pela vizinhança, chamando os comparsas. “São três horas, o moço deixou”... Então, eles chegam, aos borbotões, com os trajes de banho e as boias. São quase todos os curumins da rua. Pulam na piscina e dali não saem até que a noite chegue. Seus gritos ecoam pela rua afora, numa algaravia de felicidade que contamina qualquer um. Sem outros brinquedos além dos pneus, eles arrancam os maracujás e os fazem de bola. Entre uma entrada e outra na água vão se apropriando das acerolas, ameixas, jabuticabas e limas que abundam no quintal.
 
Quando o sol se põe, num vermelhão só, lá para as bandas do oeste, eles vão saindo, um a um. Desembestam pelo portão afora sem nem dizer obrigada. Sabem que o jardim é deles e que no dia seguinte voltarão para nova festa. Ainda molhados e sem a menor vontade de entrar em suas casas, arriscam um último jogo de frescobol. Invadem outro quintal. “Moça, empresta as raquetes”... Não têm nada de seu, mas ao mesmo tempo tudo possuem. Vivem em comunidade.
 
Só quando a noite vai longe é que a rua se aquieta. A gurizada entra, os vizinhos vão fechando os portões, a dama da noite começa a exalar seu perfume, as corujas voltam ao muro, os gatos se encaixam nas casinhas, os cachorros se aprontam para dormir. Assim, passa-se mais um dia no Campeche, no sul do sul do mundo, num outono de tirar o fôlego. E, mateando no alpendre, parece que vida fica cheia de sentido quando as crianças ainda brincam na rua e invadem quintais que nem são seus, sem que ninguém se incomode ou puxe uma espingarda de calibre 12. Os filhos da rua são os filhos de cada um e sempre há alguém a espiar pelo seu bem estar. É nessa hora que a gente suspira e pensa no quanto é bom viver.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Bolívia quer recuperar sua saída para o mar



No último dia 23 de março, durante as comemorações do “dia do mar”, celebrado pelos bolivianos para recordar o momento em que o país perdeu sua saída para o oceano Pacífico, em 1879, o presidente da Bolívia anunciou que vai entrar com uma demanda contra o estado chileno no Tribunal de Haya, visando recuperar território. Segundo o presidente Evo Morales, naqueles dias de conflito não se pode dizer que houve uma “guerra” com o Chile, como consta nos livros de história, afinal, a tomada de Antofagasta em 14 de fevereiro de 1879 não teve qualquer resistência armada. “Foi uma invasão. A Bolívia só conseguiu reagir mais de um mês depois”. Evo também considera que o Tratado de 1904, que firmou a soberania do Chile sobre 120 mil quilômetros quadrados de terra boliviana, incluindo 400 quilômetros de costa, foi uma imposição injusta.

A disputa entre Chile e Bolívia, na verdade, foi fomentada pelas empresas britânica que, à época, detinham o controle das empresas que faziam a exploração das riquezas minerais na região do Atacama. Como a Bolívia queria definir novas taxas, mais altas, pela exploração, os britânicos, aliados aos chilenos, decidiram conquistar o território. Também havia muita controvérsia sobre os limites reais de cada país depois das guerras de independência e isso levou o Chile a se autoproclamar dono das terras. Por outro lado, sabe-se que quando a Bolívia foi criada, em campanhas de Simón Bolívar, ele mesmo já deixara claro que o novo país deveria ter uma saída para o mar. O fato é que as disputas comerciais levaram os dois países à guerra, incluindo ainda o Peru (que também perdeu território) na disputa.

Desde então, o Dia do Mar sempre foi uma data especial na Bolívia, porque, nela, é possível reviver esse momento e também reverenciar a memória do patriota Eduardo Abaroa Hidalgo, um dos primeiros civis que decidiu incorporar-se as milícias nacionais quando teve início a resistência contra a invasão chilena na chamada “Guerra do Pacífico”. Ele participou da histórica Batalha de Topáter e resistiu, sozinho numa trincheira, contra dezenas de inimigos. Chamado a render-se ele assomou, atirando com sua velha espingarda, até que finalmente caiu, abatido. Por sua bravura, foi enterrado com honra pelo exército chileno na cidade de Calama. Só em 1952 seus restos foram repatriados e enterrados numa cerimônia que levou milhares de bolivianos às ruas. É um dos mais importantes nomes do panteão boliviano. Por isso, nos dias em que se recorda sua bravura e seu amor à Bolívia, sempre volta, profunda, a certeza de que o país não pode ficar sem o seu acesso ao mar.

Nesse dia 23 de março, quando Evo Morales anunciou que vai buscar os tribunais internacionais, o ex presidente de Cuba, Fidel Castro, enviou uma carta ao amigo boliviano, na qual afirma que o cobre extraído da região de Antofagasta, garante pelo menos 39.500 milhões de dólares por ano ao poder imperial e à burguesia internacional, desde que o território foi tirado da Bolívia. E o cubano não está errado, a produção de cobre de todo o Chile, cerca de 50 milhões de toneladas, gera 70 milhões de dólares ao ano, mas apenas 30% vai para os cofres da nação chilena, perfazendo 52% do PIB. O Chile exporta uma proporção de 30/70 do todo o cobre da região do Atacama, sempre na parceria com agentes privados, na maior parte estrangeiros.

Depois da declaração de Evo Morales A Assembleia Legislativa Plurinacional (ALP) da Bolívia já formalizou o seu respaldo a essa decisão de demandar o Chile frente a Haya por uma saída soberana pelo Pacífico. E o vice-presidente, Garcia Linera, lembrou que a Guerra do Pacífico iniciou um longo calvário da pátria boliviana, provocado pela"ambição e cobiça chilena", reiterando que o tratado também é ilegal pois foi firmado sob a ameaça de ocupação de novos espaços do território. Assim, nessa discussão a Bolívia já vai para mais de 100 anos tentando encontrar sua saída para o mar e, agora, já não está mais disposta a seguir com os intermináveis encontros que levam a lugar nenhum.

No Chile, o presidente Sebastián Piñera, tem declarado que essa demanda boliviana não tem qualquer fundamento histórico ou jurídico. Para ele, o Tratado de Paz e Amizade firmado em 1904 é legítimo e o Chile vem cumprindo com todas as disposições do acordo. Alega também que os chilenos estão dispostos a defender a unidade nacional.

O clima está bastante tenso entre os dois governos.