domingo, 30 de dezembro de 2012

Condenados por lutar



Elke Debiazi é uma mulher jovem, bonita, ponderada, com certa doçura no jeito de se expressar. Mas, que ninguém se engane, quando precisa ela vira fera, seja para defender seus direitos ou proteger a filha de 11 anos. Foi guerreira durante toda a faculdade, feita na UFSC. Tão logo entrou no curso de História, percebeu que aquela universidade não podia ser como era. E começou a luta por uma Universidade Popular. Antenada, passou a militar num grupo organizado, percebendo que só no coletivo as coisas mudam de fato. Passou pelo Centro Acadêmico e logo estava no Diretório Central dos Estudantes, disposta a fazer uma universidade nova. Assim, esteve presente em todas as lutas que aconteceram nos anos de universidade. Um desses anos em particular, mudou sua vida. Foi o de 2005. Nele ela iria se encontrar com a difícil condição de ser considerada uma “criminosa social”, com todas as implicações que isso pode trazer a alguém.

O ano de 2005 foi intenso na UFSC. Primeiro foram os estudantes que começaram uma luta renhida pela melhoria das chamadas bolsas-treinamento. Naqueles dias, a UFSC pagava 250,00 e o aluno era obrigado a cumprir uma jornada de quatro horas diárias. Nela, em vez de estudar ou fazer pesquisa, os estudantes atuavam como trabalhadores técnico-administrativos. Esse tipo de bolsa já vinha sendo questionado inclusive pelo Ministério Público, que orientava um ajuste de conduta havia sete anos. Assim, naquele ano a indignação chegou ao auge, gerando inclusive, duas greves de bolsistas. Era o mês de junho, as negociações não avançavam, o Conselho Universitário não se decidia a aumentar o valor da bolsa e os estudantes decidiram então por um ato radical: ocupar a reitoria. E foi o que fizeram. A movimentação garantiu que o Conselho decidisse finalmente discutir o assunto. Os estudantes não queriam apenas aumento do valor, mas também mudanças no sistema. A bolsa de estudos tinha de ser para estudar e deveria durar o tempo todo do curso, garantindo assim a permanência do aluno, sem a necessidade de renovação a cada semestre. Nesse processo, eles conseguiram o apoio irrestrito dos trabalhadores que também já vinham denunciando o uso do aluno como um tapa-buraco para os problemas administrativos.

Foi decidido então que seria criada uma comissão envolvendo estudantes, professores, técnicos e representantes da reitoria para discutirem uma nova proposta para as bolsas. Elke Debiazi representava os estudantes no Conselho Universitário e fez parte da comissão assim como José de Assis pelos técnicos, Roselane Neckel pelos professores, Corina Espíndola, pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis e a professora Olga pelo Curso de Direito.

No meio dessa batalha estudantil, os trabalhadores e professores também iniciaram as suas, aderindo a uma greve nacional das duas categorias no mês de agosto e, desde aí, a universidade mergulhou totalmente na luta, com as três categorias envolvidas, cada uma com suas especificidades.

Não foi sem razão que, quando finalmente o Conselho Universitário chamou para discutir a proposta que havia sido construída pela comissão, todos exigissem uma reunião aberta, afinal, cada uma das categorias tinha interesse de que a questão das bolsas fosse resolvida, assim como esperavam que o Conselho se manifestasse sobre as pautas locais de greve. Foram dias de negociação e quatro reuniões fechadas até que o Conselho decidiu aceitar uma reunião aberta para o dia 18 de agosto, na qual seriam discutidas as demandas dos professores, dos técnicos e dos estudantes. E foi com a esperança de um acordo que o auditório da reitoria se encheu naquele dia. Mas, entre os conselheiros o que se armava era uma vingança contra os estudantes, pois ninguém ainda havia engolido a ocupação do mês de junho.

A reunião começou tensa e o primeiro tema foi o das bolsas. A comissão apresentou seus estudos e a proposta de um valor de 330 reais, mais a garantia de que a bolsa seria para vincular o aluno a um projeto de pesquisa e não mais ao trabalho técnico. Tudo isso já tinha sido discutido com a reitoria e havia um acordo firmado para a aprovação. Mas, quando o tema se encaminhava para a votação, um dos conselheiros, Osni Jacó, do Centro de Desportes, alegou que não estava esclarecido e que por isso o Conselho não poderia votar. O mundo veio abaixo. No auditório havia quase 500 pessoas, estava lotado. O acordo já estava fechado e atitude do conselheiro inviabilizava tudo. Foi aí que alguém puxou uma palavra de ordem: "ai, ai, ai, ninguém entra, ninguém sai". As pessoas foram fechando as portas e exigindo que a votação acontecesse. Eram nove horas da manhã.

Com a confusão criada pelo professor Osni, os Conselheiros decidiram desfazer a mesa e encerrar a reunião, mas os estudantes, professores e técnicos tomaram o microfone e passaram a fazer o debate. Ninguém se atrevia a sair. Lá fora, os trabalhadores da segurança da UFSC trancavam as portas e não deixavam ninguém mais entrar. Havia um impasse. As horas passavam e nada se resolvia. Foi só às cinco horas da tarde que o então reitor Lúcio Botelho decidiu aprovar ad referendum o aumento do valor das bolsas. Mas, nessa hora, a Polícia Federal já tinha sido chamada para “evacuar” a reitoria. Acordo fechado, todo mundo saiu festejando vitória. Mas aquele seria um dia que não terminaria ali.

A criminalização da luta

Poucas semanas depois estudantes e técnicos tiveram o troco. A reitoria instituiu um processo administrativo para investigar o que eles configuraram como “sequestro do reitor”. Como os conselheiros tinham ficado no auditório das 9 às 17h, denunciaram o ato como “cárcere privado”. A partir daí começou o terrorismo. Das quase 500 pessoas que estavam na reunião do conselho, a administração decidiu apontar 22 estudantes e quatro técnicos como os que lideraram e fomentaram o tal “sequestro”. Uma dessas estudantes era Elke Debiazi. Durante os “interrogatórios” muitos deles eram ameaçados com a possibilidade de não terminarem o curso e, no caso dos trabalhadores, de demissão, a não ser que entregassem os “cabeças” do “crime. Para os envolvidos aquilo era surreal. Não houvera sequestro, não havia “cabeças”, mas um ato político de luta pela aprovação daquilo que já estava acordado. O professor que provocou o tumulto nunca foi indiciado por nada. Mas, aquele era um tempo em que os estudantes estavam sendo vistos como um “câncer social” em Florianópolis já que no ano anterior, 2004, também haviam protagonizado a Revolta da Catraca, contra os aumentos das tarifas de ônibus. Assim, era preciso uma punição exemplar.

O processo administrativo dentro da UFSC seguiu pelo ano de 2006, mas a história não acabaria aí. Naquele ano, 17 estudantes e dois técnicos foram chamados para depor num processo que havia sido instituído pela Polícia Federal, também com a acusação de sequestro e cárcere privado. A abertura do inquérito na Polícia Federal tinha sido uma iniciativa do então reitor da UFSC, Lúcio Botelho, e do vice-reitor Ariovaldo Bolzan.

Durante todo esse período, a direção do Sintufsc (Sindicato dos Trabalhadores da UFSC) atuou no sentido de proteger todos os envolvidos, chamou reunião com todo o movimento social para discutir a criminalização e garantiu que um advogado acompanhasse o caso. O tempo passou e, em 2008 assumiu um novo reitor. Novas lutas foram travadas no sentido de arquivar o processo administrativo para que os estudantes não tivessem sua vida acadêmica atrapalhada. Foram necessárias muitas lutas e manifestações para que isso acontecesse, até que se conseguiu. Não por ação do reitor, mas por inação. O processo se extinguiu.

Já o inquérito da Polícia Federal seguia sem trégua. Mais estudantes foram chamados a depor, somando 22. Em 2009 muda o grupo que dirigia o Sintufsc e o assunto dos estudantes fica esquecido. O tempo passara, muitas outras coisas foram acontecendo, greves, lutas, e o pequeno grupo que respondia o inquérito foi sendo esquecido, não só pelo Sintufsc como pelo próprio movimento social. “Foram anos difíceis, a vida da gente ficou em suspenso. Sabíamos que a qualquer momento poderíamos receber um duro golpe. Não tínhamos mais força política, não havíamos conseguido manter a campanha efetiva pelo arquivamento do processo", lembra Elke.

O fato é que o Ministério Público Federal ofereceu denúncia e foi instaurado um processo penal. Nele, os então reitor e vice figuram como testemunhas contra os estudantes, assim como os delegados da Polícia Federal Ildo Raimundo da Rosa e Jessé Ferry, os técnicos Nader Ingrascio Gharib, Gilson Pires e Corina Martins Espíndola, e os professores Eunice Sueli Nodari e Osni Jacó da Silva. Os 22 estudantes estavam então indiciados como réus num processo criminal. “Também tivemos muitos problemas com a assessoria jurídica. A advogada conseguida pelo sindicato cuidou por um tempo, alguns, que podiam, buscaram assessoria individual. A maioria buscou discutir alternativas coletivas e no final acabamos contratando um advogado. Esse, várias vezes nos alertou que era muito provável a condenação de pelo menos alguns dos envolvidos. A punição serviria de exemplo aos demais estudantes, que ousassem lutar. De qualquer modo, desconhecíamos o conteúdo das fitas que constavam nos autos do processo o que tornava muito frágil qualquer possibilidade de defesa".

Cada um dos estudantes viveu então mais um período de terrorismo mental. E o que se articulava era um acordo: eles assumiam a culpa, pagavam cada um a quantia de mil reais para a Justiça, ficavam obrigados a – de três em três meses - informar ao delegado sobre o que estavam fazendo e onde estavam morando e não podiam ausentar-se do estado sem autorização do juiz. Era uma espécie de liberdade condicional que duraria por dois anos. A vantagem é que eles teriam a ficha limpa. “A gente estava muito confuso e fragilizado. O nosso advogado nem conhecia bem o processo e defendia a ideia do acordo. Nossas vidas estavam em suspenso, já haviam se passado cinco anos, estávamos sozinhos nessa luta”.

Por conta de todas essas fragilidades, quando chegou maio de 2010 a maioria dos estudantes decidiu assinar o acordo. Não via mais saída. Apenas três deles não aceitaram, mas mesmo assim estiveram presente no ato de assinatura para fortalecer os colegas. “Foi um dia muito triste, porque sabíamos, inclusive, que um dos colegas havia dado o nome dos que tinham militância em grupos organizados, como se esses fossem os `culpados´ pelo que havia acontecido. Ficamos muito revoltados, decepcionados. Saímos dali com um tremendo sentimento de impotência. Tudo aquilo fora um grande prejuízo na nossa vida e poderia ter sido diferente”.

Elke não cita o nome do colega, mas numa visita aos documentos do processo é possível encontrar nas folhas 236, 237 e 238, nas quis está registrado o depoimento de R. P. Ele diz: “que o bloqueio da entrada e saída de pessoas durante a reunião, já havia sido tramado anteriormente por dois grupos estudantis existentes na UFSC", e segue citando o nome de vários deles, inclusive o de Elke. Ou seja, não só ligou alguns dos colegas a grupos organizados como levantou a suspeita sobre a possível ideia de “sequestro” dos membros do conselho. A descoberta desse depoimento deixou o grupo em profunda tristeza.

Os resultados da luta

Depois de assinarem o acordo, os estudantes precisaram de mais um período de batalha. Havia uma dívida de 20 mil reais para ser quitada. Cada um deveria pagar mil reais, conforme o acordo. Então, eles organizaram festas, fizeram bingos, passaram o chapéu nos sindicatos. Mas ainda ficou um “carnê das casas Bahia” para saldar. Não foi um tempo fácil. Cada um deles estava reorganizando a vida, buscando trabalho. “Naqueles dias a gente se sentia um pouco abandonado. Tínhamos feito uma grande luta coletiva, mas na hora de enfrentar a justiça ficamos muito sozinhos. A gente não se lamentava, tocava a vida".

Mesmo com toda aflição de um processo por sequestro nas costas, Elke seguiu seu caminho. “Não tinha arrependimento sobre o que se passara, era o certo a fazer, e o que aconteceu foi até um motivo a mais para ir em frente, rever prioridades. Nesse período eu terminei o curso, fiz um mestrado e estava mergulhada no trabalho”.

A luta de Elke, assim como a dos demais 21 estudantes criminalizados naquele ano de 2005 não foi em vão. Por conta de todo o processo de luta, que envolveu as greves de bolsistas, ocupação da reitora e ocupação do Conselho, o sistema de bolsas mudou. A bolsa-treinamento foi extinta e instituiu-se a bolsa-permanência, com um valor maior e com a regra de que o estudante esteja ligado a uma pesquisa. Essa era a proposta da comissão que foi interrompida pelo professor Osni naquele triste dia em que os estudantes foram acusados de sequestro. “Por isso eu acredito que faria tudo de novo. O que fizemos foi o certo. Havia uma comissão, havia um acordo. Nós queríamos resposta da reitoria de um processo que já durava um ano, com reuniões nos Centros Acadêmicos. A gente só queria garantir que os estudantes carentes pudessem permanecer na universidade. E isso nós conseguimos”. O custo foi alto, mas essa é uma verdade incontestável. Hoje, na UFSC, a permanência digna daqueles que tem menos condições econômicas só é real por conta da luta desses estudantes.

Os outros estudantes que se recusaram a assinar o acordo seguem respondendo pelo que a justiça chama de “crime”. Na época eles alegavam que uma questão política não podia ser tratada como um crime. Para eles, aquilo era uma tentativa clara de intimidação e criminalização de movimentos sociais e havia a necessidade de uma resposta à altura para isso. Com as novas demandas do movimento popular o caso foi sendo esquecido e hoje, cada um deles segue, sozinho, fazendo a luta contra mais essa arbitrariedade.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Farejando auroras...



E então já está por aí o natal. É o que me diz a televisão em promoções a granel.  Já, para mim, essa não é uma data de presentes e compras compulsivas. É o aniversário de um dos meus deusinhos:  Yeshua, Jesus. Digo deusinho porque não arrogo a ele poderes sobrenaturais. O vejo assim, homem, cheio de dúvidas sobre seu destino, a clamar pelo pai na cruz. O vejo menino, a questionar as leis juntos aos velhos encarquilhados em certezas ultrapassadas e aprisionantes. O vejo jovem, a arrancar os outros de seu conforto, propondo a ilegalidade e a rebeldia. Gosto demais desse Jesus arrogante, a expulsar vendilhões do templo, denunciando-os e apontando-lhes o dedo. Encanto-me com o Jesus que se coloca diante do poder e, arriscando morrer, levanta a cara e diz ao ser acusado de ser deus: “assim o dissestes”. E se entrega ao juízo do povo, mesmo sabendo que esse mesmo povo que ele tanto amou, o vai abandonar, preferindo Barrabás. É esse guri que eu espero nas noites de natal. Aguardo, cheia de esperança, que ele renasça nos jovens que vejo andar por aí a fazer a luta, a questionar as leis, a apontar os vendilhões, a demolir as certezas de um sistema que mata e exclui.
Sei também que a data do natal está conectada a tempos ancestrais, celebrados desde as eras imemoriais por todas as culturas da terra. O solstício de verão, o começo de uma nova estação cheia de beleza e luz. Sei que era nesse dezembro que as gentes de outros tempos dançavam sob o fogo, cantavam e esperavam que a vida revivesse e a roda do mundo seguisse seu curso no rumo do bem-virá. Por isso, gosto também de me perder nessa esperança do povo andino, o Qhapac Rayme, e oferecer alimento a mãe-terra, Pachamama, confiando em suas bênçãos e na vida que brota. É alimento, e faz com que eu veja que as coisas sempre nascem, do nada, da dor, da desesperança, da desilusão. Há sempre um reviver. Isso é o natal, essa data mágica de todas as fés.
Então, quando chega esses dias de natal, gosto de celebrar. Um pouco como as culturas antigas, um pouco como as da minha gente ancestral, mas, nascida e criada na herança cristã, também me apetece compartilhar com meu deusinho o dia do seu nascimento. Porque Jesus, como tantas outras divindades de tantas outras religiões, nasce no dezembro, perto do solstício, essa noite curta que promete vida, e nada mais. Tão simples, tão densa. E, nesse 2012, ainda mergulhada nas interpretações das lendas maias, de fim de um longo tempo de escuridão. Porque é disso que falam os maias. Fim de uma era, começo de belezas... Talvez, como dizem os andinos, o começo de um novo pachakuti, uma virada de pernas para o ar de tudo que há. Outra lógica, outra forma de viver no mundo. Quem nos impede de crer? E de lutar por isso?
Assim, este ano, nessas semanas que antecedem o natal, o fim da era maia, o novo pachakuti, vou adentrar pelas noites, farejando a vida. Que ela venha, pelas mãos dos velhos amigos, e na caminhada dos novos, que chegam agora e já se comprometem com tanta força. Espero-te meu deusinho, assim como espero todas as divinas criaturas capazes de brotar fogueiras em mim e em todos os que amo! Porque acredito que não há escolhidos, eleitos, nem deuses que são maiores que outros. Toda a crença do homem, inventada para sustentar seus terrores, remete a uma única e abençoada certeza: de que somos uma raça frágil, que necessitamos uns dos outros, e que estamos procurando, juntos, a terra sem males.
Então, desde o 21 de dezembro até o natal, que se dance pelas ruas, como dizia Nietzsche, e que seja tudo pelo bem das gentes. Todas as gentes, com todos os deuses e deusas... E que brote o amor, esse sentimento revolucionário, e que se mude a vida...

domingo, 16 de dezembro de 2012

Simón e Artigas


No Uruguai é assim. A gente vai andando pelas cidades, sejam elas grandes ou pequenas e lá está, indefectível, a estátua de José Artigas. Durante muito tempo, logo depois da independência, ele foi enxovalhado pelos dirigentes locais, dado como bandido, renegado, traidor. Mas, como a história sempre acaba vindo à tona, aos poucos a verdade aflorou e Dom José foi sendo conhecido como aquele que fora capaz de tornar o Uruguai uma nação. Com os índios charrua, tapes e minuano, os negros e os pobres ele formou um exército popular. Foi com essa gente valente que ele enfrentou a elite argentina, a cobiça dos ingleses e o desejo dos portugueses de se adonar da banda oriental. Naqueles dias de guerras intensas em que tudo era tão incerto, as gentes se debatiam entre se aliar aos portugueses, aos ingleses ou aos espanhóis. E, Artigas, nascido e criado nas tolderias indígenas, dizia: e por que não sermos livres? Por que não sermos nós mesmos?

Essa sua pergunta radical foi a que fez tanta gente andar com ele pelas planuras da campanha uruguaia. Famílias inteiras o seguiam, na batalha contra os invasores e contra os vende-pátria, sempre tão numerosos. E foi ele, mais a sua gente livre, os que garantiram a liberdade e a independência do Uruguai. Não foi à toa que a elite da época tratou de traí-lo e massacrar os que nele confiavam. Artigas tinha muito poder, andava como um igual entre os seus, era amado. Então, depois de formado o estado uruguaio, ele passou a ser uma ameaça. Queria reforma agrária, terra para os pobres, poder para os “de abajo” e uma pátria grande, unindo todos os povos. Os dirigentes trataram de empurrar Artigas para fora do país, tirá-lo da órbita do seu povo. Ele buscou abrigo no vizinho Paraguai, onde morreu, muitos anos depois, impedido de voltar ao Uruguai. Os que não foram com ele para o exílio tiveram destino pior, como os índios charrua. Atraídos para uma emboscada, foram massacrados em Salsipuedes.

Só mais tarde é que, necessitando criar um espírito nacional, a mesma elite que o repudiu, o trouxe de volta, já como cinza e o incensou como “pai da pátria”. Mas, para as gentes ele nunca deixara de ser o valente blandengue que construíra uma mátria, uma terra-mãe, espaço de povo livre. Por isso Artigas se apresenta em pedra, em cada praça uruguaia, a lembrar de um tempo em que índios, negros e pobres ergueram uma nação.

Dia desses, numa praça de Tranqueras, no departamento de Rivera, um pedacinho de gente chamado Simón Ernesto encontrou com uma dessas estátuas de Artigas. E, depois de subir por aqui e por ali, fixou seu olhar no rosto impávido do velho herói. Com a sensibilidade que só um “niño” pode ter, ele percebeu que o homem de pedra estava estranho:

- Mamãe, por que o Artigas tá com a boca pra baixo?

- Porque ele deve estar triste, meu filho.

- E por que ele tá triste, mamãe?

Paciente, Verônica, a mãe, explicou a história toda. Que, depois de lutar com tudo e todos pela liberdade do Uruguai ele foi obrigado a sair do seu país, indo morar em terra estranha. Também ressaltou que por toda a vida ele fora companheiro dos índios, dos camponeses, dos negros e dos pobres. E que, por isso, até hoje havia quem não gostasse dele. E ele, talvez, ali, fixado em pedra, ainda estivesse triste por tudo isso.

Simón Ernesto ouviu, silente, os olhos pregados no busto de Artigas. Pela cabecinha de menino, mais afeito a brincadeiras e estrepulias, a breve lição sobre seu país poderia ter ficado perdida entre o giro de uma pandorga e o grito de algum moleque na esquina. Mas não. Simón acercou-se da estátua, tomado pela ternura, e a abraçou, enchendo o rosto contrito de muitos beijinhos.

Só depois saiu correndo pela praça. Ele nem viu, mas o rosto de pedra se distendeu e o velho caudilho sorriu.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Pelos direitos humano

Manifestação pelos Direitos Humanos em Florianópolis.


terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Direitos humanos, uma verdade desconfortável





Pode parecer um paradoxo, mas o fato é que o mundo precisou, há 64 anos, criar uma declaração de direitos humanos. Isso porque, ao final da segunda grande guerra na Europa, as pessoas perceberam, estarrecidas, que havia seres humanos capazes das coisas mais atrozes contra outros seres humanos. Foi o caso do holocausto judeu imposto pelo nazismo. Mas, não só isso, houve também o massacre de Hiroshima e Nagasaki, com a bomba atômica lançada pelos estadunidenses, num momento em que o Japão já estava praticamente rendido. E, em vários outros pontos do mundo também havia gente capaz de torturas e outras violências indizíveis. Então, todo esse terror fez com que a nascente Organização das Nações Unidas, criada em 1945, estabelecesse uma norma para evitar que as gentes no planeta seguissem sendo vítimas da violência e da dor. Assim, no 10 de dezembro de 1948, a ONU lança a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Ali, os países membros assumiam o compromisso de garantir à família humana o direito de viver com dignidade, liberdade e paz. Também declaravam que esses direitos deveriam ser protegidos pelo Estado  sob pena de as pessoas serem compelidas, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão.

Assim, nos 30 artigos que conformam a declaração estão elencados os direitos que devem ser gozados por qualquer ser humano, seja ele branco, negro, amarelo, azul ou vermelho. Seja bom ou seja mau, pobre ou rico, ou de qualquer religião. A cada um deve ser assegurada a igualdade de direitos, a fraternidade, liberdade, segurança pessoal, igual proteção da lei, proteção contra a discriminação, garantia de um tribunal independente e imparcial quando responder qualquer acusação criminal, ser considerado inocente até que seja provado o contrário, proteção contra qualquer interferência na vida pessoal que signifique ataque à honra, direito de locomoção, à nacionalidade, a buscar exílio se perseguido, direito à liberdade de pensamento, opinião e expressão, direito à livre associação,  à segurança social,  ao trabalho, ao salário justo, repouso, lazer, alimentação, vestuário, educação, cultura.

A declaração também garante que ninguém pode ser mantido em escravidão ou servidão, ninguém pode ser submetido à tortura nem tratamento cruel, e ninguém poderá ser arbitrariamente preso. O texto, de certa forma, ampara a pessoa em praticamente tudo o que é essencial á vida. E mais, garante o direito de receber dos tributos nacionais o remédio efetivo para os atos que violem esses direitos fundamentais.

É com base nisso, portanto, que as famílias dos desaparecidos da ditadura militar  seguem exigindo do governo os corpos de seus entes queridos, entendendo, inclusive que eles não cometeram crime algum. Pelo contrário, aqueles que se levantaram contra a ruptura da ordem provocada pelos militares em 1964, estavam exercitando o seu direito inalienável de rebelião contra a tirania, como a própria declaração dos direitos humanos assegura. Naqueles dias em que o poder militar rasgava a Constituição e a própria Declaração dos Direitos Humanos, meninos e meninas, professores, camponeses, sindicalistas, militantes sociais foram presos, torturados, mortos ou desaparecidos. Sofreram as violências mais vis e muitas famílias sequer tiveram o direito de chorar os seus mortos. Os corpos nunca foram encontrados, não há sepultura, não há certezas. Só a dor profunda que, hoje, segue exigindo o direito humano de exigir do estado "o remédio efetivo para os atos que violaram esses direitos".

Aqueles que compactuaram com a violência e a tortura da ditadura militar, ou os que são capazes de desejar todas essas crueldades aos "outros" seguem disseminando o discurso de que os que padeceram sob o jugo do estado na ditadura militar eram bandidos. E se fossem, mereceriam a tortura? Cabe a um homem infligir dor a outro? Já não foi superada a lei do talião, do olho por olho, dente por dente? Pois parece que não, uma vez que a tortura e a violência seguem sendo praticadas nas prisões, nas guerras, e nas periferias.

É, porque também pode ser torturante não ter casa para morar, não ter comida, segurança ou um trapo para cobrir o corpo. Tudo isso é violência, da mais atroz. Mas, ao que parece, muitos dos que gozam da possibilidade de ter um trabalho, um salário, uma casa e vida digna, preferem imputar ao outro, ao que nada tem, a etiqueta de "vagabundo", "bandido" , "baderneiro", "terrorista" e, assim sendo, estaria liberado a ele toda a sorte de sevícias.

Mas, para os que militam pelos direitos humanos, mesmo o bandido, o vagabundo, o caído, ainda segue sendo humano e, portanto, merece ser tratado como tal. Seus crimes, se houverem, serão punidos. A violência, a tortura, a sevícia não trará de volta os que morreram, não mudará os fatos, não aplacará a dor. É certo que ainda é longo o caminho para a beleza, para um mundo onde não seja necessário que exista uma lei que puna aqueles que violentam seus irmãos. Só que enquanto esse tempo não chega, as famílias de desaparecidos, os sem casa, sem terra, sem trabalho, sem espaço no mundo capitalista, seguirão lutando, esgrimindo a lei, que é o que se pode ter agora.

E àqueles que insistem em achincalhar a luta pelos direitos humanos, dizendo que só se defende bandido, que fiquem alertas, porque como diz a canção do Chico, uma belo dia podem se ver na condição daqueles que tanto discriminam. A vida é uma roda, que gira sem parar, ora estamos aqui, ora ali, ora em cima, ora em baixo. Por isso, o melhor é defender a vida, seja de quem for, homens, mulheres, animais, plantas. Porque só vale a pena viver se todos a nossa volta têm vida plena. É bom para nós e para eles. Então, ainda que tantos não queiram, seguiremos em caravana no deserto dos amores humanos...

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Brasil de Fato - um jornal valente




Desde antes da abertura democrática, quando o país ainda vivia sob o manto da ditadura militar, era comum nos encontros de jornalistas e sindicalistas a ideia de um jornal nacional que fizesse o contraponto com os jornalões da mídia comercial. A sociedade exigia um espaço onde as notícias pudessem ser dadas, notícias reais, sobre a vida real, sobre os problemas estruturais, sobre os dilemas brasileiros, as lutas populares. Mas, aquilo era um sonho. Ainda havia muito que caminhar para chegar a isso.

Quando veio a abertura e a volta de uma capenga democracia esse tema continuou voltando à baila. As lutas sociais recrudesceram nos anos 80, começaram a nascer os movimentos que iriam mudar a cara do país como o das mulheres camponesas, o dos trabalhadores sem-terra, os partidos políticos de esquerda, enfim, uma gama imensa de possibilidades e de esperanças que precisavam ser divulgadas e não encontravam guarida nos espaços tradicionais, esses sempre conservadores, quando não reacionários. Mas, naqueles dias de re-evolução, os sindicatos e movimentos sociais estavam mais preocupados em criar seus espaços de luta e organizar as gentes, não entendiam que a comunicação é coisa estratégica e que, sem ela, os movimentos não conseguem fazer entranhar nas gentes a ideia que buscam defender no dia-a-dia. As coisas precisam ser ditas para se encarnarem nas gentes. As palavras andam, como dizem os astecas.

Nos anos 90, com as entidades já estruturadas e os sindicatos mais organizados, o tema voltou a pipocar. Havia sindicatos demais, entidades demais, cada uma com seu jornalista, seu boletim, seu jornal particular. Se tudo isso se juntasse, não seria possível tornar real um jornal que circulasse nacionalmente com notícias do interesses dos trabalhadores, dos excluídos, dos marginalizados? A resposta foi afirmativa e um pequeno grupo ligado aos movimentos que organizavam o Plebiscito Popular da Luta contra a Alca começou a se movimentar por todo o país buscando parcerias. Era necessário conformar uma rede de colaboradores que pudesse encaminhar as matérias dos mais variados lugares do país para que o jornal não ficasse com uma cara exclusivamente paulista ou carioca, como é comum.

E foi assim que numa noite mágica do ano de 2003, no III Fórum Social Mundial,  em Porto Alegre, foi lançado o projeto do jornal Brasil de Fato. Um momento de profunda emoção dividido com um estádio lotado e a presença motivadora de gente como Eduardo Galeano, Hebe de Bonafini, Augusto Boal e Sebastião Salgado. Das arquibancadas, tomadas pela alegria, vivenciamos essa hora boa do jornalismo nacional. Nascia um veículo que poderia fazer frente a toda essa gosma de mentiras que os jornalões e as TVs comerciais protagonizam todos os dias. Um jornal com cara das lutas, que as mostrasse não como discurso proselitista e sim dentro dos parâmetros do jornalismo. Notícia, tal qual ensinou Adelmo Genro Filho, não a que manipula, mas a que aparece como uma forma de conhecimento cristalizado no singular, capaz de transcender para o universal. Notícia narrada de tal forma que aquele que lê possa estabelecer os nexos com a realidade e refletir sobre as causas e consequências.

E foi assim que chegou o Brasil de Fato, com essa missão. Agora, em 2013, o jornal cumprirá uma década, sobrevivendo a todas as tormentas. Não é coisa fácil manter um jornal em nível nacional, com correspondentes em vários lugares, superando a pequena política que insiste em personalizar, inchar egos, puxar brasas para sua sardinha. É preciso muito trabalho, alguma dose de sacrifício e, muitas vezes, uma paciência digna de Jó. Há que enfrentar não só o oligopólio da mídia nacional, mas também travar essas pequenas batalhas dentro da própria esquerda ainda tão pouco ciente do papel de um jornal dessa natureza. Quantos sindicatos combativos não preferem assinar um jornalão paulista a essa proposta generosa do Brasil de Fato? Quantos vereadores, deputados, lideranças comunitárias reproduzem essa mesma prática de fortalecer o inimigo? Mas, mesmo com tantas incompreensões e descaminhos o Brasil de Fato vai seguindo. Com colaborações espontâneas, com trabalho dedicado, com ganas de mostrar a realidade não como "drops" informativos, mas com análise, contexto, impressão, olhar de repórter.

Agora, no girar da nova roda de dez anos, o Brasil de Fato precisa se fortalecer. Precisa do apoio dos movimentos sociais, dos partidos de esquerda, dos sindicatos, das gentes. É hora de um grande mutirão de assinaturas, para que o projeto fique mais musculoso e consiga chegar a muito mais gente. Ele ainda precisa estar na padaria, na mercearia, no pequeno bolicho de beira de estrada, nas bancas alternativas, na vida mesma, onde estão as pessoas que precisam dele, e isso custa... Daí a necessidade de um apoio real, concreto.

Mas, é preciso aqui registrar um aviso aos que ainda não entenderam que um jornal popular não tem de fazer proselitismo. Esse valente jornal precisa seguir como espaço da notícia e não do discurso. Para além da opinião, também necessária, precisa entrar nas casas com a informação que forma, que apresenta a atmosfera dos fatos, que esmiúça, que se oferece aberta para a compreensão. Os trabalhadores, os abandonados, os explorados, eles sabem onde dói a sua dor e, munidos de informação, saberão entender o que se passa no mundo. Daí o papel revolucionário desse jornal: espaço de conhecimento.

O jornal Brasil de Fato faz dez anos e é uma bonita experiência de comunicação popular. Vida longa a todos aqueles que nesse tempo todo vêm superando obstáculos e colocando toda semana um exemplar na rua. Desde a redação, que se expressa nos quatro cantos do país, é assim que ele se faz, com coragem, com ternura,  com suor, com risos, com dor, com beleza, com lágrimas, com alegria, todos esses sentimentos que, juntos, transubstanciam aquilo que mídia oferece como informação descolada da realidade do todo em conhecimento para a construção de uma nova sociedade.

Que na próxima década as mentes se abram e o jornal avance como arma concreta da luta de classe, necessária e urgente.  

Feliz década, Brasil de Fato... Seguimos!

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Meninos




Na minha rua mora um menino/homem/poeta/músico/anjo, nem sei o que é, de tantas coisas cheias de ternuras. Ele "perde" seu tempo a fazer brinquedos para a gurizada que ainda tem a rua de areia para viver a infância. Volta e meia chega um guri no portão chamando seu nome. "Faz uma flecha? Faz uma funda? Faz uma capa de batman? Faz uma pandorga? Arruma a bicicleta? Enche o pneu? Tem uma fita pra amarrar o escudo do capitão américa? Enche a bola? " ... É uma procissão! E ele, paciente, atende a todos os pedidos, gastando horas a cortar bambus, a inventar capas e outras maluquices.

Outro dia o seu irmão de alma encontrou um caminhãozinho de brinquedo jogado numa das trilhas do Campeche. Lá veio ele com o "lixo" para ser reaproveitado. A carroceria virou um presépio e as rodinhas ficaram largadas no chão. Pois o guri fazedor de coisas logo deu um destino para elas. Pregadas em um pedaço de tábua logo viraram um rolimã. E nessa manhã de sexta, calorenta demais, um piazito da Coruja Dourada saiu agarrado ao brinquedo, com os olhos cheios de aventuras.

Enquanto o outro ficou, com os olhos cheios de novas invenções, tão menino quanto o que saiu.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Congresso do Sintufsc - um retrocesso histórico


A direção do Sindicato dos Trabalhadores da Universidade Federal de Santa Catarina (Sintufsc), hegemonizada pela política do PCdoB e PT, conseguiu um feito histórico durante o XI Congresso da Categoria. Terminou o principal fórum dos trabalhadores sem uma tese guia para dar direção política ao sindicato, sem um plano de lutas e protagonizou um golpe sem precedentes na história da entidade. Sem que qualquer discussão tivesse sido feita nas reuniões que elegeram delegados foi apresentada a proposta de reeleição ilimitada e aumento do tempo de mandato, numa ação casuística e oportunista, legislando em causa própria, uma vez que os atuais diretores, por conta de uma cláusula de barreira (agora derrubada), não poderiam disputar novo mandato. Praticando a velha política de cabresteio de delegados, a força que controla o sindicato (PCdoB e PT) protagonizou o que há de mais miserável na prática política, além de, numa ação arrogante e antissindical, mudar o nome do sindicato visando abocanhar trabalhadores de outras bases.  Agora, o Sintufsc passa a se chamar Sindicato dos Trabalhadores das Instituições Públicas Federais do Ensino Superior do Estado de Santa Catarina. 

O Congresso começou bonito, com um amplo debate sobre a conjuntura, no qual os delegados puderam analisar a realidade e os desafios colocados para os trabalhadores diante do governo de Dilma Roussef. É que o Congresso tem por finalidade discutir qual o rumo político que a luta dos trabalhadores vai tomar nos próximos dois anos. Na mesa estavam duas forças políticas. Uma representando o apoio ao governo de Dilma e outra que teceu críticas sobre como o governo vem conduzindo o trato com os trabalhadores. Na plenária, as forças em debate também já se configuravam muito claramente. No lado direito da sala, os delegados da situação e no lado esquerdo, a oposição. 

Na parte da tarde, a discussão foi sobre a EBSERH, a empresa criada pelo governo para privatizar os hospitais universitários. A fala da professora Sara Grenemann, da UNB, desvelou toda a sorte de problemas que advirão caso as universidades aceitem ter os HUs geridos por essa empresa. Mostrou claramente como  a fundação vai roendo por dentro o sistema público, a criação das duas portas de entrada (para os particulares e para o SUS), a divisão dos trabalhadores entre celetistas e estatutários, e o desastre que isso vai representar para o ensino da medicina, uma vez que desde a formação, o aluno já estará sendo moldado para o mercenarismo médico. Aí também os discursos foram inflamados e mesmo  a força da situação do sindicato derramou críticas contra a empresa e contra o governo. Tudo parecia se encaminhar para uma boa análise política da situação e lutas acirradas contra os ataques governistas.

O reinado do assistencial e coronelismo

Mas, no segundo dia de Congresso, o véu caiu. A direção do sindicato mostrou o quando o discurso que faz está descolado da prática, deixando claro que tudo não passa de um jogo de cena visando encobrir os verdadeiros interesses. O primeiro ponto do dia foi a prestação de contas da direção. Ali, estampado no balancete, já era possível perceber o caráter assistencialista e coronelista da prática sindical da atual direção. Absolutamente nenhum centavo foi gasto em formação ou discussão dos problemas nacionais, estaduais e locais que tem interferência direta na vida dos trabalhadores. Nenhum debate sobre a previdência privada, nenhuma discussão sobre as eleições municipais, nada sobre os projetos do governo que atacam a classe trabalhadora. A única ação política puxada pelo sindicato em dois anos de gestão foi uma frágil luta contra a EBSERH e isso porque teve de cumprir as decisões de assembleia que sempre exigiu essa luta. Ainda assim, a ação limitou-se a realização de atos rituais, com um simples chamamento pela página do sindicato, sem visitas aos setores para informar dos riscos e sensibilizar para a participação.

Em compensação, o sindicato gastou 271 mil reais em festas, e 59 mil reais em prêmios, consolidando uma prática nefasta de cooptação a partir de concessão de pequenos privilégios. Foram nove grandes festas, com distribuição de televisão, micro-ondas e notebooks, tudo  financiado com dinheiro da categoria. A direção argumentou que as festas servem para chamar os filiados para dentro do sindicato, o que é fato, mas, na prática, não significa que eles venham para as lutas, até porque elas nem aconteceram, excetuando a greve, é claro. A verdade é que esse tipo de ação recupera práticas anacrônicas de domínio que, ao longo dos anos foram derrubadas pela ideia de que sindicato existe é para lutar. Mas, toda essa concepção sindical foi sendo esgarçada pelo grupo que atualmente dirige o sindicato e, hoje, a face assistencialista reassume com força total.   

A  segunda parte da manhã esteve reservada para a apresentação e discussão das teses que definem a direção política do sindicato para os próximos dois anos de gestão. A atual diretoria, segura do controle dos delegados, simplesmente não apresentou qualquer tese, acreditando que poderia neutralizar qualquer crítica ao governo e a si mesmo. E foi aí que se deu a morte da política. Apenas duas teses foram apresentadas, todas duas de oposição. Nelas, os filiados faziam avaliação da conjuntura internacional e nacional, avaliavam a ação do governo e a relação com os trabalhadores, teciam críticas a política da atual direção do sindicato e apontavam um plano de luta. No debate, a direção e seus aliados fizeram seus comentários e ao final ficou definido que as duas teses iriam compor uma única tese, uma vez que não havia contradição nem divergência entre elas. 

Mas, no final do congresso, o inusitado aconteceu. Como as atividades tiveram de ser suspensas para a realização da assembleia estatutária, os dirigentes do sindicado tiveram tempo de avaliar melhor a tese apresentada. Na hora da votação, o diretor Antônio Lopes, disse que a direção aceitava a análise de conjuntura, mas queria retirar a parte do texto que tecia críticas ação do sindicato. Foi aberto o debate. Só que outro filiado, Dilton Rufino, decidiu apresentar a proposta de recusa total da tese porque não admitia a crítica ao PT nem a menção do "mensalão". Segundo ele, a tese assumia a opinião da revista Veja e ele queria derrubá-la por completo. A mesa então colocou em votação essa proposta, sem mais discussão. E a plenária votou por não aceitar a tese. Com isso, a direção protagonizou um fato inédito. Pela primeira vez na história do sindicato, o Congresso não delibera por qualquer política para os próximos dois anos. Isso porque a direção não teve a capacidade de escrever sequer dois parágrafos, pelo menos, para respaldar a sua política. Tinha o controle dos votantes e preferiu omitir-se. Ou seja, não verbalizou nem deixou registrado a proposta que existe na prática: apoio ao governo e sindicato assistencial.  Política de coronel, antidemocrática.

Fraude intelectual

Mas, para tristeza dos trabalhadores da UFSC o Congresso ainda protagonizaria outra aberração. Como a tese apresentada foi derrubada na íntegra, não era possível recuperar o plano de lutas que vinha nela embutida. Então, a direção do sindicato decidiu colocar em discussão e votação o plano de lutas construído no Congresso passado. Ou seja, não havia pensado uma política para o sindicato e muito menos um plano de lutas. Os delegados da oposição preferiram se abster dessa discussão entendendo que o plano de lutas apresentado pela direção não refletia o debate desse congresso. Era um documento produzido numa outra conjuntura, com outras concepções de sindicato (de luta, solidário, generoso), e se configuraria numa fraude intelectual apresentar aos trabalhadores um plano de lutas que não representava a verdadeira concepção sindical que havia se fortalecido nesse congresso específico. E assim, sem qualquer vexação, os delegados do campo da situação aprovaram a fraude. O plano de lutas para os próximos anos em nada tem a ver com a concepção sindical que saiu vencedora do congresso.

Mudanças estatuárias: a miséria continua

A concepção coronelista e assistencial também apareceu com clareza na Assembleia Estatutária, que se fez em meio ao congresso. Os principais debates se colocaram no campo do assistencialismo e do privilégio com filiados se esganiçando pelo direito de ganhar gordas diárias nas viagens de "luta" e exigindo aumento no valor do auxílio-funeral e auxílio-natalidade. Patético. A discussão política sobre essa prática sindical atrasada e cooptadora era rejeitada, muitas vezes  de forma violenta, com alguns delegados sendo intimidados durante a fala, inclusive com ameaça de processo caso seguissem fazendo críticas. Um circo dos horrores. 

O único debate que desvelou o caráter real da atual direção do sindicato foi o realizado em cima do artigo primeiro do estatuto. A proposta apresentada pela diretoria era de mudar o nome e o caráter do sindicato. A diretora Terezinha Cecatto foi a porta-voz da proposta e, durante todo o debate, foi deixada sozinha na defesa, sem que qualquer outro diretor tivesse a coragem de se pronunciar, talvez para não deixar registrado na história o que estavam planejando. Eles se ocupavam de ficar em pé, na porta, cuidando para que nenhum delegado saísse. Pois, trazendo como argumento o desejo de alguns trabalhadores dos antigos Colégios Agrícolas que não aceitam passar para o sindicato que representa agora os Institutos Federais, e querem permanecer filiados no Sintufsc, a direção apresentou a seguinte proposta. O sindicato deixaria de ser Sindicato dos Trabalhadores da UFSC e passaria a se chamar SINDICATO DOS TRABALHADORES-TÉCNICOS ADMINISTRATIVOS DAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR DO ESTADO DE SANTA CATARINA e teria a seguinte redação: 

Art. 1º - O SINDICATO DE TRABALHADORES TÉCNICO-ADMINSITRATIVOS DAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR DO ESTADO DE SANTA CATARINA - SINTUFSC, fundado pela Assembléia Geral realizada em 8 de abril de 1992, por transformação da Associação dos Servidores da Universidade Federal de Santa Catarina - ASUFSC, com sede e foro no município de Florianópolis - SC, é constituído para a defesa e representação legal dos trabalhadores, abrangendo os trabalhadores e empregados de instituições públicas federal de ensino superior, sejam estas integrantes da administração indireta, autárquica ou fundacional, além das empresas públicas ou pessoas jurídicas de direito privado contratadas ou fundações apensas conveniadas da administração pública que desenvolvam atividades dentro das IFES do Estado da Santa Catarina, cujo desempenho profissional contribua de forma direta ou indireta para a consecução e desenvolvimento dos princípios indissociáveis do ensino, da pesquisa, da extensão e assistência do órgão público de ensino. (grifo meu - aí está a EBSERH).

No debate, foi lembrado à direção que o artigo primeiro do estatuto já contemplava a possibilidade de filiação desses trabalhadores e também o pronunciamento do advogado do sindicato que já havia dito que esses trabalhadores poderiam seguir filiados. Também se alertou que o Sintufsc não era um sindicato só de técnicos, que historicamente se colocava na vanguarda da proposta de unificação das categorias no âmbito da educação superior, mantendo no seu quadro também os colegas professores. Que a proposta apresentada era redutora, excludente e, principalmente, antissindical, uma vez que abria também para a filiação específica de trabalhadores de outras instituições (espaço do SINASEF, Sindicato dos Trabalhadores em Fundações etc..). O artigo ainda desvelava o completo apoio dessa direção à EBSERH, uma vez que também já previa a filiação dos futuros trabalhadores da fundação. 

A proposta de oposição era a de que se mantivesse o artigo tal como estava porque ele era muito mais abrangente sem, contudo, entrar no perigoso terreno das práticas antissindicais tais como a tentativa de captura de base de outras entidades. Foi lembrado também que o SINTUFSC jamais se absteve de apoiar política/financeira e estruturalmente as lutas das demais categorias que atuam dentro das universidades. Isso  é decisão política e concepção de sindicato de luta. Basta lembrar a ação do Sintufsc em outros tempos, com outra direção, no apoio concreto à luta dos trabalhadores terceirizados.  

Mais uma vez o debate foi inflexível. A única mudança aceita pela direção foi a de não exclusão dos professores, até porque, no caso do Sintufsc, eles fazem parte desde a criação da associação, quando não era ainda permitida a sindicalização. Assim, a direção acatou a retirada do termo "técnico-administrativos" e trocou por "trabalhadores em educação".  A votação foi apertada, mas venceu a proposta da direção. Com novo nome, ao que parece, agora o sindicato dos trabalhadores da UFSC vai começar a disputar base de outros sindicatos.  

E a sucessão de golpes ainda estava longe do fim. Pela mão de um ex-diretor, membro do grupo da direção, vieram as duas propostas que definiram o oportunismo e o casuísmo da atual gestão. Retirar a cláusula de barreira que define rotatividade nos cargos da direção e aumentar o tempo de mandato. De novo, o debate foi marcado pela falta de qualquer argumentação política. As falas se limitavam a ataques pessoais ou emocionais. Não havia qualquer argumento plausível além da legislação em causa própria. Assim, a partir desse congresso, os dirigentes atuais - que não poderiam concorrer na próxima eleição - estão de novo no páreo e o mandato fica estendido para três anos porque, segundo Otávio Pereira, o autor da proposta, em dois anos não dá para fazer um bom trabalho. 

A presença dos novos

O final do XI Congresso do agora SINDICATO DE TRABALHADORES  EM EDUCAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR DO ESTADO DE SANTA CATARINA, foi patético. Nenhuma direção política, um plano de lutas artificial e fraudulento, a aceitação da EBSERH e a explícita prática antissindical. A única preocupação da atual administração foi garantir que as festas continuem, os prêmios sejam distribuídos entre os amigos, que o auxílio-funeral tivesse um aumento substancial, que possam se reeleger e ficar no mandato por mais tempo. Esse é resultado final de dois dias de discussão. A morte da política. O ressurgimento explícito de um sindicato coronelista.

A única coisa boa que ficou dessa miséria intelectual e política foi a presença dos novos trabalhadores, os que entraram nos concursos mais recentes. Estavam lá em um bom número, trouxeram argumentos sólidos, políticos, e perceberam muito bem o que estava em jogo ali. Conseguiram observar claramente as práticas descoladas dos discursos e se posicionaram por uma concepção de sindicato de luta, de classe, solidário e generoso. Assim, apesar do resultado conjuntural, foi possível sair do congresso com a profunda sensação de que uma nova página começará a ser escrita na UFSC por uma nova geração ainda não contaminada pela velhas práticas coronelistas tão comuns na universidade. Uma geração que não se rende à servidão voluntária e não se move por interesses apenas pessoais. 

Um ar fresco começa a soprar nos caminhos da UFSC, e outros congressos virão. A mudança está a caminho, assim como a primavera!    
  

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Já montei o meu presépio


Tenho gravada nas retinas e no coração as imagens dos natais da minha infância. No início do mês de dezembro minha mãe começava a preparar a construção do presépio. Era uma tradição. Nós, os três filhos, participávamos organizando os personagens da famosa noite em que nasceu Jesus. A família, os bichinhos, os pastores, os reis magos, a estrela. A coisa levava o mês todo. Havia a árvore de natal, mas ela era absolutamente secundária. Porque minha mãe reverenciava o menino e não o Papai Noel. Naqueles dias, no interior do Rio Grande, o capitalismo selvagem ainda não tinha chegado com toda a sua força. Depois, eu cresci, e segui a velha tradição. Todo o natal, monto o presépio com todos os seus personagens. Passo o mês inteiro esperando pelo dia do aniversário desse adorável deus-menino.

Sempre há os que dizem que ele (jesus) não existiu, que é uma invenção de Paulo. A mim não importa. Tudo que sei é que as histórias que dele se contam, das coisas que ensinou, amparam minha prática de vida. Jesuânica. Por isso o natal segue sendo importante pra mim. Não que eu precise de um dia específico para lembrá-lo ou falar dele. Mas é um aniversário e é sempre bom celebrar.

Não gosto dessa onda de Papai Noel. Sua figura bonachona, de bom velhinho que vinha visitar as crianças na noite do grande advento perdeu o sentido. Santa Klaus não gostaria de saber o que fizeram dele. Agora, natal significa consumo, louco, desenfreado. Nas telas da TV tudo o que se fala é da porcentagem do aumento das vendas e nas ruas já começa o frenesi dos pacotes. Impossível andar pelo centro.

Eu não dou presentes no natal. Busco o refúgio interior e o encontro com a idéia de Jesus, o cara do aniversário. Também conspiro com as demais culturas originárias do hemisfério sul que celebram o solstício de verão. Faço minhas cerimônias, minhas rezas e celebrações. No dia do solstício, que é o 21, o sol parece ficar estacionado no céu. O dia é longo e a gente faz reverências àquele que nos dá calor e propicia a vida. Kuaray.

Então, natal é isso: festejar a vida. Celebrar com os que amamos a idéia de que o mundo precisa ser justo, que as riquezas devem ser repartidas, que as pessoas precisam ser solidárias e amorosas. É dia de comungar com os ancestrais, com a natureza, com a vida que vive. Dia de agradecer por poder estar neste lindo jardim. Se há algo a presentear, que seja essa ideia, de que o natal não é um dia para comprar presentes impessoais, impostos pelo mercado capitalista. O natal é dia de armarmos nosso presépio interior, com todos os personagens do nosso grande advento.

Aqui em casa ele já está montado, no alpendre e em mim... Feliz Natal... Feliz Solstício... !!! Porque esse 21 será ainda mais especial. Começa um novo giro cósmico. Outro pachakuti. Recomeços, re-nasceres...

domingo, 2 de dezembro de 2012

Florianópolis, cenário de um futuro


Vila do Arvoredo , espaço de luta popular

A cidade de Florianópolis é vista como um lugar bastante conservador, e é. Principalmente na política. Apenas duas vezes provou a experiência de uma administração mais progressista. A primeira com Edson Andrino (PMDB - 1986 a 1988), logo após a ditadura militar, quando a população teve chance de participar dos projetos, começaram as eleições diretas nas escolas e foi criada uma política cultural com a Fundação Franklin Cascaes e Conselho de Cultura. Depois, com Sérgio Grando (Frente Popular/1993 a 1997), quando foi criado o orçamento participativo (iniciativa do vice, Afrânio Bopré, que era do PT), de ampla participação popular. Mas, logo depois, essa proposta foi derrotada pela Ângela Amin, do então PPB, hoje PP. Hoje, nem mesmo a vertiginosa migração que faz com que a cidade comporte gente de todos os lugares, mudou essa cara conservadora. Na última eleição, por exemplo, venceu o candidato que representa a oligarquia que domina esse lugar desde sempre.
Por outro lado, as gentes não são ignorantes no que diz respeito ao que querem. O resultado das urnas deu uma resposta muito clara: as pessoas querem uma cidade mais acolhedora, com menos cimento, mais jardins e preservação da natureza. E o candidato vencedor fez um uso muito eficaz desse desejo. Só que essa vontade de uma cidade mais “humana” não se cristalizou unicamente no voto dos que apostaram no candidato do PSD. Ela apareceu, surpreendente, nos 14% que votaram no candidato do PSOL, Elson Pereira, que pautou sua campanha na denúncia do processo de destruição da cidade, apontando propostas viáveis, e acabou fazendo muito mais votos do que se esperava.

No segundo turno, o recado da população foi ainda mais incisivo. Entre a velha oligarquia e o PMDB que entregou a cidade aos empreiteiros, as gentes decidiram dar passo atrás, na tentativa de barrar o processo de crescimento desordenado na cidade. Uma aposta da consciência ingênua, mas, ainda assim, uma aposta em outra proposta de desenvolvimento, embora seja bem provável que nela, os mais pobres continuem segregados. Como sempre acontece, os eleitores perderam a memória do que foram os governos do casal Amin em Florianópolis. Durante o mandato de Esperidião Amin e Bulcão Viana (1989 a 1993), a cidade viveu grandes e violentos despejos. Foi quando “limparam” a Via Expressa da presença dos pobres, quando as gentes das comunidades de Chico Mendes, Vila Aparecida, Monte Cristo tiveram de ocupar a prefeitura, Câmara de Vereadores e realizar tantas outras lutas para garantirem o direito de – apesar de serem empobrecidas - morarem na cidade em espaços nobres. Depois, nos dois mandatos de Angela Amin (1997 a 2005), os mais pobres também padeceram, principalmente os moradores de rua que tiveram o albergue Maria Rosa fechado, sofreram violências e alguns até foram misteriosamente assassinados. Isso sem falar da destruição da vida cultural que havia na Praça XV quando os artesãos foram removidos sob forte aparato policial e expulsos do lugar.
Assim, tendo como base o passado, é bem pouco provável que a situação mude. A cidade mais “humana” pode vir a ser mais humana só para alguns. Durante o processo eleitoral isso já ficou bem visível quando os candidatos ignoraram olimpicamente as demandas do movimento popular. Chamados para dois debates promovidos pelo movimento dos sem-teto no norte da ilha, os candidatos César, Gean e Angela não compareceram. Chamados para outro debate organizado pelos movimentos sociais, os três igualmente ignoraram. Era o sinal de que os mais pobres estavam definitivamente fora da agenda de qualquer um dos três que levasse a cidade. O que nos permite pensar que a pobreza continuará assim: fora da agenda.

Mas, como a vida é dialética, o povo excluído começa a se mexer. Das 64 áreas de periferia que a cidade tem, algumas já estão se levantando em luta, principalmente no quesito moradia. Comunidades como o Papaquara e Vila do Arvoredo, que ou já foram removidas ou estão em processo de remoção têm protagonizado atos, caminhadas, protestos e insistem em fazer ouvir suas vozes. Querem ter o direito de morar na ilha, em lugares bons, assim como os ricos migrantes de São Paulo e de outros lugares que aportam em Florianópolis todos os dias, com a diferença de trazerem as carteiras recheadas.

O golpe legislativo

E é justamente a questão da moradia que tem causado quedas de braço entre os que mandam na cidade e as gentes empobrecidas. Ainda durante o processo eleitoral, a Câmara de Vereadores, votou, no apagar das luzes do recesso pré-eleitoral, um bloco de alterações de zoneamento que mudará radicalmente o perfil de alguns bairros da cidade. Nelas, o principal ponto em questão é o número de andares que podem ser construídos. Enquanto as comunidades, em cinco anos de discussões do Plano Diretor Participativo, definiram claramente que não querem a verticalização dos bairros, os vereadores que as representam fizeram ouvidos moucos e votaram pela alteração. O “golpe” não ficou sem resposta. Imediatamente as comunidades responderam com manifestações, protestos e ocupações da Câmara. Nada adiantou. Em Florianópolis os vereadores parecem não representar o povo.

Passada a eleição, os vereadores realizaram nova votação dos projetos de alteração, dessa vez um por um. Mas, de novo enganaram a cidade. A sessão marcada para uma quarta-feira foi adiantada na sessão de terça-feira e a votação se fez tarde da noite, com a Câmara vazia de gentes. Nos discursos dos vereadores estava estampada a tentativa de jogar os pobres contra os pobres. Dividir para reinar, lição tão antiga. Segundo eles, a proposta de elevação do número de andares era para atender ao projeto “Minha Casa, Minha Vida”, que se propõe a fazer moradia para famílias de baixa renda. A negativa dos movimentos sociais em permitir essa elevação era então colocada como um entrave ao bem-viver dos pobres. Nada mais demagógico e mentiroso.

Se qualquer pessoa tiver o bom senso de procurar pelas propostas que estão sendo defendidas pelo movimento social no Plano Diretor Participativo, vai ver que é justamente o contrário. A proposta popular, definida em cinco anos de reuniões e debates, não quer que sejam criados guetos nas comunidades, com os pobres concentrados em regiões periféricas dos bairros. Um exemplo disso é o Campeche. A proposta de apartamentos para o “Minha casa, Minha Vida”, defendida pelos vereadores (que aprovaram a alteração) estão concentradas na beira da SC 405, bem longe da praia e da parte urbanizada. A proposta do movimento é totalmente diferente. O que está definido no traçado dos mapas é a integração de todos os patamares econômicos. Estão previstas áreas de moradia popular também perto do mar, no centrinho do bairro, enfim, espalhadas, para não causar segregação e muito menos a conurbação, que é a ocupação de todos os espaços, sem áreas de respiro para a natureza. E também não há nenhuma regra no projeto federal de que as moradias tenham que ser em prédios de quatro andares. Por que não apostar em projetos que levem em conta a cara do bairro, o modo de vida de cada comunidade? Por que não permitir que pessoas de baixa renda possam morar em espaços mais abertos, com natureza, horta e outros confortos ambientais? Por que ao pobre tem de estar reservado o cubículo? Essas são questões que os vereadores não quiseram responder.

E isso não foi ao acaso. É que os vereadores, na verdade, não estão se importando com os pobres. Eles querem elevar o número de andares para que outros projetos de condomínios de luxo possam se fazer. Defendem os interesse dos empreiteiros, das construtoras, das imobiliárias. O “Minha casa, Minha vida” foi só a forma que encontraram de jogar os pobres contra o movimento. Matavam assim dois coelhos com uma única paulada.

O Plano Diretor

Pois aí está um dos grandes desafios do novo prefeito. Tão logo passou a ressaca da vitória, César Souza declarou na imprensa que a primeira coisa que vai resolver quando assumir é o Plano Diretor. Isso mostra que o próximo ano será de grandes embates. Ninguém sabe ainda qual é a proposta que o novo prefeito vai defender. Hoje, são duas concepções que estão colocadas na mesa. Uma é o projeto elaborado pela Fundação CEPA, empresa privada chamada pelo governo de Dário Berger para organizar o que foi definido pelas comunidades e que acabou criando um monstrengo, totalmente desconectado da vontade popular. Praticamente nada do que foi definido em cinco anos de reuniões comunitárias foi levado em conta. E a outra é a do movimento comunitário, consolidada em cinco anos de encontros, oficinas, debates e deliberações, que desenha um modelo de cidade que leva em conta a proteção da natureza, a criação de parques, outro modelo de mobilidade, melhor equilíbrio na ocupação do solo, modelo de saneamento alternativo, respeito ao modo de vida típico dos bairros, proteção do patrimônio cultural, enfim, uma cidade onde caibam todos, sem discriminação nem segregação.

E esse projeto comunitário não é um amontoado de princípios abstratos ou de caráter ideológico. Cada proposta está embasada no conhecimento da cidade, está fundamentada tecnicamente e desenhada nos mapas. Não foi brincadeira o que as comunidades trabalharam e produziram ao longo desses anos. Toda essa força foi jogada fora pelo governo Dário. E agora com César, quem saberá?

Assim, enquanto corre o tempo, os movimentos sociais seguem discutindo e burilando o projeto de Plano Diretor. Querem ter tudo pronto para quando janeiro chegar, quando então travarão o debate com o novo prefeito. A composição da Câmara também está modificada, alguns dos vereadores que protagonizaram as alterações de zoneamento não se reelegeram, mas outros seguem ali. A bancada progressista engordou, em quantidade e qualidade. Alguns vereadores, ainda que de partidos mais ao centro, podem ser aliados da população, mas há muita coisa em jogo e tudo ainda está bastante obscuro. É bem possível que esse debate do Plano Diretor defina claramente os lados e quem está com quem.

O certo é que as comunidades estão alerta e atuando, movimentos sociais estão mobilizados, algumas demandas estão na rua. Todos sabem que o legislativo não é aliado, embora uns poucos vereadores o sejam. Então, o ano de 2013 certamente será de muitas lutas, porque a história já mostrou que só o povo organizado muda a vida.

sábado, 1 de dezembro de 2012

O México em luta


O México viveu hoje momentos de grande conflito durante a posse, no congresso, do novo presidente, Enrique Peña Nieto, que recebeu a faixa presidencial numa insólita cerimônia, no primeiro minuto do dia, meia noite e um. Segundo os manifestantes que foram às ruas e cercaram o palácio legislativo, o presidente, ao qual chamam de “narcotraficante”, não é legítimo, portanto não pode tomar posse.

O palácio legislativo amanheceu cercado e a polícia se preparou para receber os manifestantes. Houve confronto e pelo menos uma pessoa morreu, ferida na cabeça como mostra a foto que já circula pela internet. O manifestante morto seria Carlos Valdívia.
 
mais informações no sitio Ocupa San Lázaro -

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

A saúde em Santa Catarina



As mulheres falavam alto, porque, afinal, o ônibus é espaço pedagógico. Discutiam a greve dos trabalhadores da  saúde que, em Santa Catarina, já passa dos 30 dias. No dia anterior trabalhadores do transporte público e os bancários haviam feito uma paralisação em apoio aos grevistas, provocando horas de filas e ansiedade, tendo o apoio de estudantes, sindicalistas e militantes sociais. E, no dia seguinte, a imprensa catarinense tocava o pau em todo mundo, alegando que o "pobre" governador Raimundo Colombo, não tinha como dar o aumento "absurdo" que os trabalhadores pediam. Não bastasse isso, ainda vinham os "baderneiros" dos motoristas e cobradores fazer confusão.

O tema era esse. As mulheres discutiam a eterna capacidade da imprensa de distorcer os fatos. Ao longo da greve, passa para a população a ideia de que o "absurdo" é os trabalhadores quererem aumento, e não o fato de um governo deixar a população sem atendimento de saúde simplesmente porque não quer se render à luta. Algumas pessoas viravam o rosto com um olhar fulminante até as mulheres, numa clara atitude de discordância. Certamente acreditavam na imprensa e nas inverdades que cria.

Mas, no banco da frente, uma outra mulher espiava com o rabo do olho, até que não se conteve. "As pessoas não sabem o que a gente passa". Explicou que era trabalhadora da saúde, aposentada há alguns anos. "O que faz os trabalhadores entrarem em greve agora é que foi tirada do salário a hora-plantão, E é isso que dá alguma dignidade ao que a gente ganha. Sem isso, o meu salário, por exemplo, fica 800 reais. Como é que uma família vai se sustentar assim?".

Então, enquanto partilhavam o trajeto, as mulheres foram ouvindo aquela cuidadora de gente. Ela contou que a maioria dos trabalhadores da saúde é obrigada a ter dois e até três empregos para  garantir um salário digno. E que isso se reflete no trabalho. "Imagine a gente passar duas, três noites sem  dormir, nos plantões. Quanto erros não são cometidos? O perigo que isso é? Não porque a gente seja incompetente, é o cansaço. Fico pensando porque as pessoas não se indignam com isso. Amanhã ou depois elas vão parar num hospital e vão ser cuidadas por nós, trabalhadores esgotados, cansados, aturdidos. Isso sim deveria ser discutido".

A greve na saúde é de fato um transtorno e uma fonte de dor. Os empobrecidos, que sofrem tanto no dia-a-dia, sem médico, sem atendimento digno, sem acesso aos equipamentos modernos de diagnósticos, sem opções de tratamento nas cidades do interior, submetidos a ambulancioterapia, acabam enfrentando mais um obstáculo. Mas, se formos observar bem, nada muito diferente do cotidiano, o qual só é vencido por conta desses mesmos trabalhadores, alguns deles verdadeiros heróis, que conseguem tirar leite de pedra.  

O governador Raimundo Colombo, que não precisa de atendimento público, prefere ignorar o grito dos trabalhadores. Faz queda de braço e se mantém inflexível. A imprensa reproduz os argumentos dizendo que o Estado não tem condições de dar a gratificação que substituiria a hora-plantão. Observem que a reivindicação dos trabalhadores ainda é modesta: apenas uma gratificação, que viria para substituir a hora-plantão, diminuída ou retirada. Ainda assim, o governador manda corta salários, humilha, recebe com gás de pimenta. Ora, não tem condições de dar a gratificação? Segundo dados do governo, no Portal da Transparência, só em recursos próprios o estado arrecada por mês 12 milhões para a saúde, gastando apenas 1,5 com pessoal. Do total do orçamento anual a saúde representa 15% de gasto. Que tal então cortar os comissionados que têm salários variando de 5 a 12 mil? Ou a publicidade, que consome 110 milhões ao ano? Dinheiro o estado tem, o fato que não quer investir na saúde. É, porque salário é investimento.

A questão é simples. Um trabalhador como o da saúde, que atua diretamente na sustentação da vida, precisa estar bem pago e bem descansado. O certo seria ter um único emprego, descansar o suficiente para poder cuidar bem de si e dos outros. Mas, o que se vê é um trabalhador desesperado, esgotado pelo excesso de trabalho, tendo de atuar com uma estrutura sucateada, um sistema desmontado, equilibrando-se no milagre. É esse o que cuida do doente, que pode ser o teu filho ou tua mãe. Aí está o ponto que deveria ser discutido pela imprensa.

O ódio da população deveria voltar-se para isso. Para o descaso com a saúde pública, com os trabalhadores, com a estrutura dos postos e dos hospitais. Mas, a maioria das gentes prefere odiar o trabalhador que luta. E mais, quando um trabalhador, esgotado pela exploração, comete um erro que custa a vida de alguém, todos os holofotes se voltam contra ele, apontado como o monstro, o assassino, o irresponsável. Lembram da enfermeira que injetou café na veia de uma pessoa? Pois é. Essa é crucificada! Não há nenhum dedo apontando para o Estado, para o governador, o prefeito ou para o diretor do hospital. A culpa é sempre individual, e do mais fraco.

O fato é que o desmonte da saúde é responsabilidade de quem governa, de quem gere os recursos, de quem decide para onde vai cada centavo. A negativa da gratificação aos trabalhadores é só uma ponta do problema. Há que pagar os trabalhadores, garantir a sua dignidade, há que garantir atendimento à população nos postos de saúde, nos hospitais, há que modernizar a estrutura, garantir os melhores equipamentos. E as pessoas também precisam se mobilizar para que isso aconteça de fato. Não basta choramingar. Há que lutar. Mas, para isso seria necessária uma articulação estadual e nacional, para além do sindical, que pudesse avançar para uma mudança radical do Estado brasileiro. Esse é o desafio da esquerda nacional. Ser capaz de gestar no meio das gentes o desejo de um mundo outro, que não esse, no qual os direitos precisam ser diuturnamente lembrados, na esgrima com o poder. Resta saber se isso é possível num país onde as lideranças sindicais e sociais estão - na maioria - domesticadas  e cooptadas.