terça-feira, 15 de novembro de 2011

A marcha em Madri - Pela escola pública

De noite, no Lava Piés


Madri, quatro milhões de habitantes, duas horas da manhã. A vida ainda está pulsando, as pessoas saem dos bares, andam pelas ruas, tranqüilas. Também eu sigo em direção a casa, em uma boa conversa com as companheiras espanholas. Estamos no Bairro Lava Piés, um dos espaços onde se concentram os latinos, africanos e migrantes de outras terras. No dizer de alguns locais “um lugar perigoso”. Mas, para quem conhece bem as coisas e sabe que a pobreza não é sinônimo de crime, não passa de ideologia. Por isso também se vê muitos espanhóis andando por ali e há bastante fraternidade.

É fácil perceber como o sistema concebe a presença dos imigrantes. Por toda a parte estão as viaturas policiais e, a cada tanto, seus ocupantes fazem a “redada” que é a vistoria por papéis. Como durante a noite os jovens saem a passear e a tomar uma bebida, os grupos de negros, latinos e marroquinos se convertem em boas presas.

Desgraçadamente topamos com uma dessas. Um grupo de negros conversava em uma praça quando chegaram os policiais. São bastante intimidantes, pois chegam em bando. Vai daí que começou uma certa confusão pois um dos jovens ou não tinha os papéis ou não aceitou aquele tipo de intervenção. De longe, ouvíamos a voz que gritava, indignada. Era um negro grande, encorpado, e falava um português de Portugal, o que me levou a crer que vinha de algum país da África. A coisa se arrastou e depois de alguns minutos lá vieram os policiais na direção das viaturas, já com o homem algemado. Ele seguia argumentando, rebelde, questionando a ação policial. Os demais acompanhavam, também argumentando.

Ali ficamos as três, impotentes. “Isso acontece a toda hora. Quando tem mais gente, as pessoas se juntam e impedem as prisões. Mas tem momentos assim, que ficamos sem forças”. O grande número de migrantes tem se convertido em um “problema” para o governo e para alguns que argumentam que essa gente que vem de fora lhes rouba o pouco de trabalho que ainda tem. Mas, no geral, o que se vê é um sentimento de solidariedade. De qualquer forma, os bairros onde se concentram os migrantes são sempre os mais visados pela polícia e a qualquer momento as pessoas podem ser revistadas com a exigência de papéis. Caso não os tenha são presas e deportadas.

Entre os espanhóis que lutam pelo direito dos migrantes de permanecer no país há os que o fazem por sentimento de humanidade, por solidariedade concreta. Mas também há os que têm muita clareza sobre o papel que Espanha teve na desgraça dos países de origem de toda essa gente. Um exemplo mais contemporâneo é o da gente do Marrocos e da região do Saharauí que esteve nas mãos dos governos espanhóis até bem pouco tempo.

De fato, ali, na madrugada fria de Madri, o que parece ficar claro a quem circula pelas ruas do bairro Lava Pies é que ali não existem “migrantes”. As conhecidas caras latinas, negras e árabes que tornam tudo tão familiar estão, de certa forma, em casa. Pois, afinal, esses povos estavam cuidando de suas vidas quando foram invadidos e dominados. Agora, querem direito de poder transitar pelos caminhos do vencedor que, à força, os fez partilhar de sua cultura e modo de vida.

Talvez a europa devesse estudar mais a sua própria história para saber que toda essa gente que hoje alguns chamam de “ilegais” nada mais são do que irmãos, filhos da mesma pátria e da mesma violência. Quando se acabou o tempo colonial pela força da luta das gentes, os países se independizaram, mas o estrago causado pelos países colonizadores foi grande demais. Agora, haveria de agüentar as consequências. O sistema capitalista inventado desde a Europa criou seus centros e periferias e hoje se autodenomina como um sistema-mundo. Pois bem, se é assim, se o sistema pode ser mundial e as mercadorias podem andar livremente entre as fronteiras nacionais, assim também as gentes. Dessa forma, não existem ilegais.

Mas, claro, isso é sonho e a realidade concreta é que nas ruas de Espanha os imigrantes pobres seguem sendo acossados. Já os que chegam para jogar no Barcelona ou no Real Madri, ou ainda os que aportam em jatos ou navios de luxos, esses são bem vindos e nunca importunados. Afinal, o dinheiro sempre pode ser um bom documento em qualquer lugar.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Uma longa noite espanhola ou a primavera?










A crise econômica e social está apenas começando

O que a mídia brasileira chama de movimento de indignados, na Espanha significa outra coisa. É certo que há muita gente indignada e que aproveita as manifestações para dizer a sua palavra, mas o movimento em si surgiu de lutas muito concretas que existem na Espanha desde há muito tempo. Uma delas é a luta das famílias que compraram suas casas e que, com a crise financeira e monetária já não conseguem mais pagar suas dívidas com os bancos. Essa gente, além de perder as casas, ainda fica obrigada a terminar de pagar a hipoteca que contraiu. Por isso, bem antes do 15 de maio, quando a Praça do Sol virou um símbolo da luta popular, o qual acabou dando nome ao movimento que segue até hoje, essa gente já andava por aí reivindicando, fazendo marchas e realizando ocupações nos bancos.

Não bastasse essa demanda muito concreta com relação às dívidas hipotecárias, havia também, já bastante organizado, o movimento “Juventude sem futuro”, que teve seu começo nas universidades. Os jovens, observando as mudanças que estavam ocorrendo no país, foram percebendo que ao contrário da geração passada, que viveu algum tipo de bem estar, não teriam a mesma sorte. Não havia moradia, nem saúde, nem educação, não havia futuro. A isso agregaram que se não havia futuro, tampouco haveria medo e desde aí saíram a lutar. Da mesma forma, estavam por aí organizados os anarquistas, comunistas, gente que trabalha com o movimento ecológico, com cooperativas de produção e consumo, enfim, uma série de movimentos sociais organizados que sempre estiveram reivindicando trasnformações.

Com as grandes movimentações populares que estavam alterando a vida no mundo árabe, muita gente que andava calada decidiu que poderia ser hora de expressar toda a sua indignação por coisas pontuais que vão desde temas históricos como a questão da república, até o movimento de pais pela guarda compartilhada. Ou ainda desde a liberação da maconha até a luta pelo fim do capitalismo. Então, de repente, pelas ruas estavam aqueles que nunca antes tinha tido coragem de se manifestar. “Nós que andamos nisso há anos ficávamos maravilhados quando saímos numa marcha e lá estava muita gente que não conhecíamos. Porque sempre éramos os mesmos. Depois do 15 de maio, juntaram-se milhares. Isso foi e continua sendo incrível”, diz Erika, do movimento ecológico.

O 15M, como ficou conhecido o movimento, não tem donos. As ruas estão aí para serem ocupadas e as pessoas reivindicam o que querem. Claro que os movimentos que já vêm organizados de longa data, ou os partidos políticos e sindicatos fortes acabam de alguma forma assumindo um protagonismo, porque estão nisso há muito mais tempo. São afinal os que permanecem nas assembléias, os que propõem e elaboram documentos, os que organizam as assembléias nos bairros. Mas, ainda assim, existem muitas pessoas que não estavam ligadas a nenhum movimento e que agora estão envolvidas até a medula no 15M.

A grande mobilização que só cresceu depois da repressão policial no 15 de maio, junto a Praça do Sol, acabou também criando um acampamento na praça, ao estilo do que já havia acontecido em Tunis e no Egito. Mas, por conta da tremenda logística que tinha de ser montada, a proposta do acampamento foi sendo revista. Hoje, pelo menos em Madrid, já não há mais acampamento, mas o movimento segue nas ruas, realizando marchas periódicas e principalmente nos bairros, onde também se organiza semanalmente com assembléias abertas e sistemáticas. Isso acaba sendo mais eficaz dado que as pessoas podem ter sua vida normal de trabalho e de vida, sem deixar de lado a organização. Julia tem 25 anos, uma filha pequena que exige cuidados, mas não deixa de estar nas manifestações, embora não esteja vinculada a nenhum movimento tradicional. “Estão acontecendo muitas demissões, o governo segue cortando verbas nas políticas sociais como, por exemplo, na de cuidados com as crianças, e a maioria acaba nem sabendo que isso acontece. Por isso viemos para as ruas. Para denunciar e barrar esses cortes de verba e de gente”.

Já os que estão na luta organizada há mais tempo e têm propostas muito claras de transformação do sistema, esse ainda é um momento muito pouco claro, embora cheio de beleza e de esperança. É o que diz Luis Nieto, da organização Paz con Dignidad. “As coisas estão acontecendo de forma muito rápida. Não sabemos onde vai dar. Estamos caminhando e discutindo as coisas, mas não sabemos se isso desembocará numa mudança de sistema ou de modelo de desenvolvimento”. Segundo ele, a Espanha está agora pagando pelos acordos espúrios dos anos 70, na política de transição da ditadura à democracia, que acabou cooptando muita gente, levando o pessoal de esquerda a se retirar do cenário. Agora, o povo está de novo se levantando. Os mais velhos estão de volta na luta, há gente muito jovem querendo mudanças. “Um ano atrás não havia esse movimento, tínhamos muito pouca gente no processo de luta. Hoje temos tudo isso, essa organização, a juventude. Penso que se daqui a um ano ficarem 30% desse povo na luta, já será muito bom para começar um processo de transformação nesse país”.

A Espanha está vivendo um clima pré-eleitoral, de eleições para presidência. Mas, nas ruas, o povo que anda a fazer a luta tem uma coisa bem clara: essa gente não os representa. O PP (Partido Popular) é a velha direita, o PSOE (Partido Socialista Obrero Español) há muito tempo que renegou o socialismo fazendo com que essa palavra perca todo o significado por aqui. E esses são os dois gigantes que estão dividindo as pesquisas, e que acabam sendo muito parecidos na sua forma de atuar. Há outros partidos menores, de esquerda e de direita, mas com muito pouca representatividade. Nas ruas, a voz corrente é a do voto nulo embora os militantes mais organizados, que atuam nos sindicatos ou movimentos sociais sejam mais inclinados ao voto na IU (Izquierda Unida uma coalizão de vários pequenos partidos de esquerda). “De qualquer forma sabemos que nessas eleições ainda não lograremos fazer frente ao sistema”, dizem. O mais provável é que ganhe o PP.

E assim segue a gente de Espanha, cheia de esperança de que algo aconteça pela força da sua mobilização. Como dizem todos, é uma incógnita o que pode acontecer. O certo é que a crise por aqui tende a se aprofundar com cortes no serviço público, desemprego, corte nas políticas sociais, dívidas externas elevadas, enfim, uma realidade que para nós, latino-americanos é muito conhecida, mas que para os europeus mais jovens, que não viveram os duros anos do pós-guerra, se afigura como uma grande tragédia, porque é o fim do chamado estado de bem estar. Nos corredores do poder, novo países da periferia européia, como é o caso de Espanha e Portugal, devem ser a bola da vez, já que a Grécia e a Itália estão aparentemente dominados. Assim, por certo, muita luta ainda deve ser travada por aqui.