quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Sete pontos sobre o acórdão do STF e o jornalismo


Quando o mundo feudal europeu caiu, após mais de mil anos de existência, não foi por acaso. Esse processo foi fruto de uma profunda revolução levada pela classe burguesa em ascensão. Mais tarde, essa mesma classe trouxe à luz outros sistemas de organizar a vida – o mercantilismo e o capitalismo – que, com as invasões de território pós 1492, foram trazidos também para o que hoje chamamos de América Latina (ou Abya Yala), nosso espaço geográfico de existência. O capitalismo, depois de mais uma revolução tecnológica, nominada como revolução industrial, cresceu, ficou forte e passou por diversas crises, mas sempre sobrevivendo. Hoje, ele se expressa como imperialismo, que é o tempo em que a livre concorrência (proposta do capitalismo mercantilista) é substituída pelo monopólio.

Essa idéia de monopólio, que significa uma (ou pouquíssimas) empresa dominar as mais diversas faces de uma determinada produção, se expressa também no campo das idéias e a filosofia hegemônica passa a ser aquela que confirma essa fase do capitalismo. Não é à toa que no mundo do pensamento, o que apareça como dominante seja a idéia de que a expansão do sistema capitalista é uma coisa contra a qual não se possa lutar e, portanto, a única saída que temos é torná-lo um pouco mais humano. Mas, é da natureza do capitalismo não levar em conta o humano. Seu negócio é o lucro de alguns, e acima de tudo. Então, pensar em humanizar um sistema como esse é ingenuidade ou falta de capacidade crítica.

É dentro deste contexto de imperialismo que aparece a proposta de desregulamentação da profissão de jornalista. E isso pode ser percebido com absoluta clareza no acórdão do STF que julgou a questão, retirando a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão. Usando e abusando de sofismas, equívocos e inverdades, o acórdão nada mais faz do que consolidar a idéia de imperialismo, dando todo poder ao monopólio industrial da comunicação. A desregulamentação da profissão de jornalista é exatamente isso: uma expressão cabal do poder monopólico, cuja única função no mundo é superexplorar os trabalhadores e extrair o mais possível de lucro. Não está em questão, de nenhuma forma, a decantada liberdade de expressão.

Diz o ponto 5 do acórdão, uma pérola: “O jornalismo é uma profissão diferenciada por sua estreita vinculação ao pleno exercício das liberdades de expressão e de informação. O jornalismo é a própria manifestação e difusão do pensamento e da informação de forma contínua, profissional e remunerada. Os jornalistas são aquelas pessoas que se dedicam profissionalmente ao exercício pleno da liberdade de expressão. O jornalismo e a liberdade de expressão, portanto, são atividades que estão imbricadas por sua própria natureza e não podem ser pensadas e tratadas de forma separada”. Este foi um dos argumentos mais discutidos durante o processo e foi o que mais pesou na decisão. Inclusive na opinião pública que, levada a acreditar neste erro interpretativo pela mesma mídia que exigia o fim do diploma, apóia incondicionalmente a decisão do Supremo: “todos têm o direito de se expressar, por que só os jornalistas?”

Bem, há que desmontar esta farsa. Proponho sete pontos:

1 - Jornalismo não tem nada a ver com liberdade de expressão – Liberdade de expressão é o direito que qualquer pessoa no mundo tem de dizer a sua palavra, seja numa reunião, gritando numa praça, pichando um muro, desenhando, e também nos meios de comunicação, privados e principalmente os públicos. Digo isso, porque num veículo privado de comunicação, o dono dele pode muito bem dizer quem fala e quem não fala. Mas, na comunicação pública, esse direito tem de ser assegurado a todas as vozes.

Ora, a comunicação envolve várias formas de expressão na qual o jornalismo é uma parcela bem pequena. E mais, o jornalismo não é espaço de liberdade de expressão, ele é uma profissão que se dedica a narrar os fatos que acontecem num determinado espaço geográfico. Assim, ele é tão espaço de liberdade de expressão como é a medicina, a geografia, a arquitetura etc... Dizer que, por trabalhar com a informação, o jornalismo não pode ser pensado separadamente da liberdade de expressão é um equívoco inaceitável vindo de juristas, em tese, tão bem preparados. Ele não só pode ser pensado de forma separada, como deve ser, uma vez que jornalismo é profissão, portanto submetido a uma razão trabalhista.

2 - Obrigatoriedade do diploma não atrapalha liberdade de expressão – No ponto 6 do acórdão, o STF apresenta outra pérola e diz que “A exigência de diploma de curso superior para a prática do jornalismo – o qual, em sua essência, é o desenvolvimento profissional das liberdades de expressão e de informação – não está autorizada pela ordem constitucional, pois constitui uma restrição, um impedimento, uma verdadeira supressão do pleno, incondicionado e efetivo exercício da liberdade jornalística, expressamente proibido pelo art. 220, § 1º, da Constituição”.

Vejam vocês que os juristas aqui falam em “liberdade jornalística”. E o que é isso? Que conceito novo é esse? O diploma não fere a liberdade de expressão, mas a liberdade jornalística? Vamos explicar o que é isso. Pedimos ao leitor que faça um exercício de memória. Pense no último Jornal Nacional que assistiu, ou o Jornal da Band, ou da Record. O que lhe vem à cabeça quando pensa em “liberdade jornalística”?

Pois o que diz o ministro está corretíssimo se pensarmos no que produzem as empresas monopólicas de comunicação no Brasil. Nenhuma delas garante a liberdade de expressão. Onde estão os movimentos sociais em luta? Onde estão os negros? Os índios? Os homossexuais? As mulheres? As crianças? Quem, afinal, diz a sua palavra na televisão – que é um meio público? A “liberdade jornalística” da Globo, da Record e da Band é a “liberdade da empresa”, é o direito do monopólio se expressar, e mais ninguém. Quem define o que é notícia nestes veículos? Quais os interesses que se expressam na maioria das telas, nos rádios e nos jornais? Pense leitor!

3 - O que é, de fato, o jornalismo? - O jornalismo não é liberdade de expressão de todos os seres humanos. Ele é um fazer profissional que abre espaço para as vozes, num determinado veículo ou empresa. O jornalismo é narrativa das vidas que não se expressam sozinhas nestes ambientes. Um profissional faz a mediação entre as múltiplas vozes que participam de um fato e a população que não viu este fato. O jornalismo não impede a livre expressão das pessoas, tanto que mais de 60% do conteúdo de um jornal privado, por exemplo, é escrito por não jornalistas. O que as pessoas fazem nos blogs, páginas da internet, twitter etc... não precisa ser, em última instância, jornalismo, porque não está preocupado em oferecer as várias faces do fato.

O jornalismo é coisa perigosa. Por isso tem de ser restrito, calado, desregulamentado. Ele, quando praticado como tem de ser, desvenda o que se encobre por detrás dos fatos. Narrar uma notícia é, como ensina Adelmo Genro Filho, ser capaz de ao descrever um fato singular, levar o leitor a compreender a atmosfera totalizante na qual aquele fato se deu. Ou seja, se um latifúndio é ocupado por famílias de sem-terra, o que, de fato, levou a isso: a concentração da terra nas mãos de poucos, a improdutividade de extensões gigantes, o roubo, etc... O jornalismo existe para desvendar a universalidade, para provocar em quem lê, ouve ou escuta, a reflexão crítica.

4 – O que os donos das redes monopólicas querem não é jornalismo – Então, se jornalismo é isso que falei acima, o que se vê, ouve e lê neste país, é jornalismo? Não! O que aí está todos os dias nas telinhas monopólicas é um sistema bem urdido de propaganda, pois como já dizia o escritor George Orwell, os donos do poder temem a opinião pública bem informada. Então, eles usam a beleza de um direito como “liberdade de expressão” para, na verdade, defenderam a “sua” liberdade de expressão. E quando digo “sua”, digo a deles, unicamente. É por isso, que a “liberdade jornalística” destas empresas não contempla as vozes dos oprimidos, dos massacrados, dos pobres, dos feios, dos sujos, dos prescindidos. Estes só aparecem como vítimas, sempre recolhidos ao seu papel de gente subalterna, nos casos de incêndio, enchentes, etc... Ou como bandidos, relegados às crônicas policiais. O jornalismo das empresas monopólicas é só propaganda do sistema capitalista/imperialista, é indução ao preconceito, ao erro, é encobrimento. Esta é a “liberdade” que aparece muito bem defendida no acórdão do STF.

5 – Nenhuma ilusão com os donos do poder – É óbvio que os ministros do STF estão cumprindo com sua função. Eles são os que dão a última palavra na compreensão das leis do sistema no qual estamos mergulhados. Mas, é bom que se lembre, as leis não são coisas divinas, reveladas por um deus. Elas são criações humanas, produzidas em espaços legislativos nos quais “a ralé” não tem qualquer “liberdade de expressão”. Os vereadores, deputados e senadores do mundo liberal burguês são eleitos pelo voto, sim, é certo. Mas, este voto não é, no mais das vezes, fruto da liberdade e da visão crítica de pessoas autônomas. No mundo dominado pelo sistema capitalista/imperialista, o que vale são os interesses dos que dominam. Estes são os que articulam e colocam nos espaços legislativos aqueles que os representam, usando os recursos mais sórdidos de compra de votos e enganações típicas da sociedade colonial, que ainda sobrevive no imaginário e na prática. Então, a lei é expressão da “liberdade” dos dominantes. Logo, não há como ter ilusões.

6 – Todas as portas fechadas - O acórdão do STF não satisfeito em legislar sobre o fim da obrigatoriedade do diploma ainda estabelece mais um impedimento. Diz o ponto 7: “No campo da profissão de jornalista, não há espaço para a regulação estatal quanto às qualificações profissionais... {o que} leva à conclusão de que não pode o Estado criar uma ordem ou um conselho profissional (autarquia) para a fiscalização desse tipo de profissão. O exercício do poder de polícia do Estado é vedado nesse campo em que imperam as liberdades de expressão e de informação”. Com isso os ministros tentam impedir qualquer outro tipo de regulamentação da profissão, deixando a categoria totalmente entregue aos desejos dos patrões.

7 – Primeiro eles arrancam a flor no jardim do vizinho – E assim o poder dos monopólios desregulamentaram a profissão de jornalista, mentindo, escondendo, enganando. Mas, isso não lhes basta. O próprio ministro Gilmar Mendes deu entrevista dizendo: “... esta foi só a primeira. Se deverá criar um ´modelo de desregulamentação` das profissões que não exigem aporte científico e treinamento específico”. É, porque para os ministros do STF não é necessário que as pessoas estudem, aprendam, conheçam. As pessoas exercendo profissões desregulamentadas, sem qualquer amparo legal, podem ser melhor dominadas, exploradas, oprimidas. Hoje foi o jornalismo, amanhã, quem será? E o mais brutal é ver pessoas que atuam na profissão compactuar com essa medíocre decisão, acusando os jornalistas de impedirem a livre circulação das idéias. São apenas papagaios amestrados do sistema.

A regulamentação da profissão não coloca em risco a ação dos blogueiros, fazedores de página, comunicadores populares. Em hipótese alguma. Mas é importante que as pessoas se dêem conta que blogs, páginas pessoais e veículos populares não são empresas de comunicação, cujo objetivo é o lucro. Logo, não estão, de maneira alguma, submetidos à razão do mercado capitalista. Quando defendemos a profissão estamos deixando bem claro que é a que se expressa no mercado capitalista, na qual o sujeito está completamente a mercê das “liberdades jornalísticas” dos patrões.

Então, é como no poema. Hoje pisaram no nosso jardim. Amanhã será o seu. E aí?

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Notícias da América Latina

Se você tu queres saber o que rola na América Latina, o melhor lugar é no sítio do IELA. Ali vais encontrar artigos, análises, reportagens, notícias. Um outro olhar, diferente da mídia entreguista e cortesã. Faça um clic e fique por dentro das coisas de Abya Yala.
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Consciência de classe



Florianópolis tem suas delícias, mas também abismos. Um deles é o transporte coletivo. Incrível como os políticos de plantão conseguem piorá-lo, quando se pensa que isso seria impossível. Pois agora inventaram de cortar horários. E os argumentos? Ah, os argumentos... São singelos: existem horários em que há menos gente circulando, logo há que ter menos ônibus. Lição de lógica. Assim, diminuem-se ainda mais os custos para os empresários, porque afinal, eles sofrem muito para manter suas frotas.

Bueno, mas se a lógica do serviço público é essa – e temos de lembrar sempre que o transporte coletivo é um serviço público – então teríamos de aplicá-la em todos os níveis. Assim, a partir de agora, os estados deveriam cortar a água nas residências no horário das 15 às 18h. É que nestas horas tem pouca gente usando água. E também deveriam cortar a luz entre 10 e 17h, pois parece que aí também tem menos gente usando a energia elétrica. E assim por diante...

O mais incrível destas decisões esdrúxulas da prefeitura de Floripa é que elas não provocam rebelião. Engraçado que outro dia, quando os motoristas de ônibus paralisaram algumas horas para reivindicar a permanência de seus colegas cobradores no emprego, teve gente que, indignada com os trabalhadores, chegou a destruir catracas no terminal. Gente tomada de ódio pelos motoristas, “esse povo irresponsável”.

Mas, contra o empresariado e os políticos que nos deixam horas e horas mofando nos terminais nestes dias de calor infernal, ninguém diz nada. Ninguém quebra catraca ou incendeia ônibus. Bom, parece mais fácil explodir contra os iguais. Outro dia peguei um ônibus, destes que não têm janela – o que é um atentado à vida. E o ar não funcionava. Tirando eu e outra mulher que bradávamos, ninguém dizia um ai. E fomos todos sufocando até o Rio Tavares. Eu havia conclamado o povo para ir falar com o fiscal, mas quando o ônibus parou, saíram todos correndo. Só eu fui pedir ao fiscal que não deixasse sair o ônibus, pois estava sem ar. Uma voz solitária e inútil.

Ele mentiu. Disse que ia tirar de circulação. Eu entrei no ônibus do Castanheira e quando vi lá estava o ônibus, indo para o ponto do Rio Tavares direto. Sai correndo, mas não deu tempo de impedir. As pessoas ficaram rindo de mim. Eu perdi meu ônibus e tive de esperar mais 30 minutos pelo outro. E as gentes de cabeça baixa, fingindo não perceber que aquilo que devia ser um direito lhes é negado todos os dias. Eu me indigno, mas não desisto. Um dia, quem sabe, os trabalhadores entendem o que é consciência de classe, que é essa coisa de saber o lugar que ocupamos no mundo.