sábado, 4 de abril de 2009

Pela ordem, senhores!


A Assembléia Legislativa de Santa Catarina votou e aprovou por amplíssima maioria o novo Código Estadual do Meio Ambiente. Não valeram os estudos, as contradições, a polêmica, nem mesmo a sombra da tragédia ambiental que se abateu sobre a região do Vale do Itajaí, que praticamente derreteu a cidade de Blumenau. Dos 41 deputados, 38 votaram sim, sete se abstiveram e dois estavam ausentes. Nas galerias lotadas de pequenos agricultores vindos de todos os cantos do estado, não havia espaço para a dúvida: o código era a salvação da lavoura. Usando o artifício da manipulação, os deputados transformaram toda discussão da lei num único ponto: o espaço nas margens do rio. Durante os discursos, foi o que predominou. Os ambientalistas, acossados em um pequeno espaço do plenário, eram vistos como inimigos. Ao final, o que parece ter ficado realmente claro é que os organismos de luta ambiental não conseguiram levar o debate aos agricultores, o que favoreceu aos governistas, que deram coloração ideológica ao tema. Tampouco os demais movimentos organizados, como os sindicatos mais combativos, se envolveram na luta. O resultado foi, em nome do “desenvolvimento”, a abertura de uma porta para a destruição ambiental do estado que já acumula a estatística de ser o que mais degrada a mata atlântica.

O cenário da trama
Plenário lotado, saguão da assembléia também. Como o espaço ficou pequeno, mais um telão foi montado na rua, sob uma imensa e cara estrutura de lona. Os discursos se sucediam em clima de guerra. As falas iam direto ao coração dos pequenos produtores, que passaram a figurar como os “grandes prejudicados”, caso o código não passasse. Assim, a lógica era essa: quem se manifestasse contra o código era automaticamente contra a pequena produção. Não havia meio termo.
Entre os milhares de pequenos produtores que se postavam em frente aos telões o clima era de confronto com qualquer um que parecesse ligado à luta ambiental. “A senhora é ambientalista?” Diante da negativa, as falas transbordaram em justificativas. E, no fundo, eles certamente tem razões para buscar a aprovação do código, embora não conheçam dele as “letras pequenas”. No geral, querem apenas defender o direito de plantar mais perto do rio e cortar as árvores que hoje estão proibidas de corte como a araucária e o angico.

Vindo da cidade de Bocaiúva, Ivone Rodrigues da Silva, mais conhecido como “Calça-Larga” não hesita em defender o código. Com ele vieram mais dezenas de agricultores lotando quatro ônibus. “A senhora veja que um pequeno produtor tem pouca terra. Se tiver de deixar 30 metros do rio, o que nos sobra? Nós vamos ficar sem espaço para plantar. E somos nós os que plantamos a comida de toda a gente. Como vamos produzir arroz, feijão?”

Fernando Carlos Mezzaroba veio de Videira, também num grupo de vários ônibus. A preocupação dele é com a madeira. “E as árvores? Eu tenho 400 pinheiros lá na minha terra e não posso fazer nada com eles. Então, o que a gente faz? A gente corta quando elas brotam, porque se vingar, não dá mais pra tirar. Isso é o que acaba com o pinheiro, porque ninguém mais quer plantar”.
Rubens Hoffmann, de Mirim Doce, também justificava o apoio na necessidade de usar o espaço perto do rio. “A gente planta, mas a gente conserva. A gente faz o manejo de forma correta. Nós fazemos isso a vida inteira. Agora tá esse problema todo porque não se pode mais cortar árvore. Nós sabemos como fazer. Ninguém aqui é contra preservar a natureza, mas nós precisamos sobreviver”.

Calça-Larga insistia em dizer que sem essa liberação das margens do rio os pequenos vão migrar para a cidade e causar mais problema social. “No campo a gente vive melhor, na cidade o caminho é o da marginalidade. Mas se não tivermos terra, como vamos fazer? Esses ambientalistas que são contra o código não conhecem o campo, não tem um palmo de terra. A gente sabe como usar e cuidar”.

Sem orientação
Os agricultores centram suas críticas nos órgãos de fiscalização. Segundo eles, a polícia ambiental tem mais poderes que a polícia normal. “Eles entram e prendem se a gente arrancar uma árvore. Nós não somos ladrões, isso não tem cabimento. A gente só quer plantar. Não tem ninguém para nos orientar, só sabem fazer autuação”.

Esse desabafo dos camponeses tem sua dose de sentido. Orientação é o que parece não haver, seja do ponto de vista do estado, seja do ponto de vista dos movimentos ambientalistas. O discurso contrário ao código não conseguiu se espalhar entre os agricultores, ficou confinado a debates acadêmicos. O governo, espertamente, bateu em dois pontos muito específicos e, com o apoio das entidades de classe, conseguiu a adesão de toda a gente. Poucos dos que faziam vigília em frente à Assembléia sabiam que os maiores beneficiados com o novo código são as gigantes empresas de aves e suínos. Estas sim é que encherão seus baús destruindo os rios e as florestas. Para se ter uma idéia, conforme dados do Levantamento Agropecuário Catarinense, dos aproximadamente seis milhões de hectares que servem à produção agrícola de Santa Catarina, 32,52% pertencem a apenas 1,9% dos proprietários rurais, detentores de grandes latifúndios. E aos pequenos, grande parte no sistema de integração do agronegócio, coube vir fazer a pressão.

Outra coisa que produtores reunidos na Praça Tancredo Neves não sabiam é que, se a preocupação pela aprovação era o uso das margens dos rios, então não precisava tanta mobilização, uma vez que o pequeno agricultor familiar, em função da reconhecida função social da sua atividade, já tem autorização legal, pelo próprio Código Florestal (lei 4.771/65) - que a lei estadual em questão pretende revogar - para utilizar as áreas de preservação permanente, desde que o faça mediante um sistema de manejo agroflorestal sustentável. Muitos deles ao receberem essa informação ficavam em silêncio, não acreditando.

O que predominou foi a ideologia do progresso. Nas faixas colocadas por todo o plenário e no lado de fora, esse era o recado. O campo quer embarcar no trem do progresso, mesmo que para isso a natureza tenha de ser sacrificada. O já antigo discurso de domínio do homem sobre a natureza segue pontificando, a despeito de todos os sinais que o planeta tem dado de que, se não há cuidado com a natureza, é o homem quem sofre. Nesse caso, ainda foi usado o desconhecimento dos camponeses sobre o Código Florestal, levando-os a sair de suas casas para defender um direito que eles já tem. Na verdade, o que vieram fazer na capital, depois de horas de viagem, foi garantir vantagens aos grandes, aos que já absorvem toda a sorte de privilégios e que estavam tolhidos pelo Código Florestal. Estes, pelo seu lado, não se fizeram visíveis na Assembléia.

Para um pequeno agricultor que levanta de madrugada e com sacrifício consegue plantar apesar de todas as condições contrárias, fica bem difícil aceitar o argumento de que eles não preservam a natureza. E, de certa forma, isso não é verdade. No geral, os pequenos produtores sabem muito bem como fazer o manejo dos recursos naturais. O que talvez não tenham ainda se dado conta é que, em Santa Catarina, muito da agricultura de subsistência foi desbancada pelo sistema integrado, no qual o pequeno segue sendo o dono de sua terrinha, mas está de forma irremediável dependente da grande empresa. É ela, em última instância, que dá as cartas e define as pautas.

Mas, sobre isso, os seus organismos de classe não fazem debate, a mídia aponta os ambientalistas como eco-chatos, terroristas, hippies e outros tantos adjetivos que induzem ao desmerecimento das causas, e o governo busca usar as dificuldades dos pequenos para favorecer, na verdade, aos grandes empresários do agronegócio. São apenas negócios. A natureza é só cenário para o chamado “desenvolvimento”. Para que venha a riqueza da “modernidade” é preciso destruir as margens dos rios, ocupar os topos de morro, garantir o corte indiscriminado das árvores e outras tantas aberrações. Os pequenos são engolidos por esse discurso e os grandes seguem desfrutando dos benefícios das leis especialmente preparadas para eles.

O fim da espécie
A aprovação do Código Estadual de Meio Ambiente deixa muito visível o significado do chamado sistema democrático-capitalista. Este é, na verdade, um sistema sem lei. Nele, as leis mudam sempre que for necessário atender aos interesses do grande capital. E, de forma extremamente competente, o sistema consegue enredar nas suas tramas aqueles que deveriam ser os seus maiores opositores. É a velha alienação já apontada por Marx.

De qualquer forma, a luta contra o código catarinense não termina aqui. Há muitas disputas a se fazer no campo jurídico e há tempo para se fazer a orientação necessária tanto entre os agricultores como na comunidade urbana. Vai depender da vontade política dos movimentos sociais, dos sindicatos, em assumir isso como uma luta conjunta em defesa da vida.

Os efeitos da destruição causados pelo modelo de desenvolvimento capitalista estão aí e se manifestam cotidianamente nas secas, nas enxurradas, nos dias de extremo calor, de extremo frio, no efeito estufa, nos tsunamis, nos ciclones, nos furacões, no derretimento das geleiras. Todas estas coisas acabam afetando a vida dos humanos em geral, como espécie. Segundo o cientista inglês James Lovelock, a terra é um sistema vivo que se auto-regula. Se o homem busca destruí-la com seu desejo de domínio, vai se dar mal. A terra tem condições de suportar os processos de degradação, ela realiza transições, vai se acomodando. Lovelock deixa claro que a destruição provocada pelo humano pode levar ao desaparecimento da espécie, não da terra. Esta se recupera.

O código ambiental de Santa Catarina legaliza o crime contra a natureza. Ela vai balançar, mas deve resistir. Já o homem... Talvez seja hora de se discutir de forma mais sistemática e responsável o modelo de desenvolvimento que nos é apresentado como panacéia de progresso e modernidade. Sem mudar o nosso modo de organizar a vida, fatalmente pereceremos como espécie.
Já o teatro do poder, protagonizado pelos deputados catarinenses, este deve ser visto como o que realmente é: um espaço de porta-vozes a soldo do grande capital. Não é à toa que seu bordão mais usado é o indefectível: “pela ordem, senhores”. Pois é, pela ordem!

Aos movimentos cabe desordenar, desvelar, subverter.

segunda-feira, 30 de março de 2009

A cidade invisível


Enquanto milhares de pessoas se esbarram no terminal urbano e empilham-se nos coletivos urbanos, no ritmo louco entre a casa e o trabalho, sem tempo para pensar sobre os motivos de terem de viver assim, os governantes seguem decidindo coisas que tem ligação direta com a vida das gentes. E aí está o paradoxo. Eles decidem pelas gentes, e as gentes sequer sabem o que acontece. O que lhes cabe é sofrer as políticas, e assim mesmo, sem tempo para que possam pensar.
É o que acontece com o plano diretor. E o que é isso? É a lei que define como vai se organizar a cidade, nosso espaço de viver. O prefeito Dário Berger no seu primeiro mandato propôs o plano diretor participativo levando a discussão para os bairros e proporcionando que as pessoas pudessem opinar e decidir. E assim foi. Por meses as comunidades se reuniram, debateram, planejaram, decidiram, fizeram oficinas, informaram. Uma coisa linda de ver. Pois agora, depois de três anos de trabalho a prefeitura manda uma carta para os representantes das comunidades no Núcleo Distrital agradecendo o apoio e pedindo toda a estrutura de volta. Ou seja. A participação acabou. Segundo a prefeitura, agora serão os técnicos os que vão finalizar o processo e, com isso, ninguém sabe se o que foi exaustivamente discutido nas comunidades será levado em conta.
Coisa típica isso. Usa-se a comunidade, faz-se a propaganda da “participação”, mas a decisão mesmo será dos tecnocratas. Não é nem dos técnicos porque como a gente sabe, a decisão é política. O plano diretor atenderá os interesses dos grandes e poderosos. Grandes prédios, empreendimento gigantescos, tudo para dar mais beleza e conforto aos graúdos. Que importa se não há planejamento viário, que importa se não há água suficiente. Toca a encher de gente os bairros, verticalizar, asfaltar.
Bom, lá no Campeche a comunidade disse não. Primeiro diz que não vai entregar a sala onde estava instalada a representação distrital. Segundo, vai continuar acompanhando bem de perto os trabalhos. Terceiro, vai fazer valer aquilo que, de forma democrática e participativa, a comunidade decidiu. Daí que é muito importante as demais comunidades fazerem o mesmo porque plano diretor é coisa séria. Ele diz respeito a nossa vida mais cotidiana. Ele pode dar respostas para as filas no trânsito, para a falta de praças, para a melhoria da qualidade de vida de todos. Eu disse de todos e não só dos ricos. Plano diretor é coisa para ser acompanhada por todos nós.
A gente sabe que não é fácil viver nesta moenda do capital. Sempre cansado, trabalhando demais, e ainda ter de bancar as peleias com o poder público. Mas é necessário. Sem isso a cidade segue sendo espaço para poucos. São muitas as lutas para travar, eu sei. Mas, esta, é fundamental. Então, no seu bairro, procure a associação de moradores e diga que não aceita entregar a decisão do plano diretor para quem não vive os problemas reais da cidade. O prefeito Dário iniciou um processo participativo e não tem o direito de parar agora. A cidade também é nossa.